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Não se façam de mortos

Há um novo desporto em Portugal que, sendo praticado por boa parte das elites do poder financeiro português, corre o risco de se transformar em competição olímpica.

Na realidade, há muito que se ultrapassaram os mínimos. Esse desporto, misto de caça-fantasmas com jogo da invisibilidade, é de alta competição, usa de velocidade e joga-se da pista principal para os atalhos. Desporto de morte súbita, cada dia a ganhar adeptos, é uma prova sui generis e com um desígnio último: fugir de Isabel dos Santos. Jogo colectivo sem ponta de lança mas com um pelotão de arrasto, apresenta-se com um lema de unidade individual inquebrantável: salve-se quem puder!

Desde que o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação revelou os Luanda Leaks, 715 mil ficheiros secretos sobre a sede de fortuna e a rede de negócios da filha de José Eduardo dos Santos, An-go-la é agora uma palavra insoletrável de escura como breu, para dezenas de cabecilhas e co-responsáveis pela tormenta que assolou o povo angolano durante décadas de conivência com o nepotismo e a cleptocracia. Despacho de pronúncia. Neste desporto, ganha o último a fazer-se de morto.

Uma investigação não julga nem encontra culpados, mas é perfeitamente justificável a tremideira que se apossou de altos responsáveis da tríade Sonae/Nos/Continente Angola, do Grupo Amorim/Banco BIC/Galp e do Grupo Mello/TMG/Efacec, assim como de sociedades facilitadoras e parceiros vários como a PwC, Vieira de Almeida, BCG e PLMJ. Durante anos, muitos agiram como inimputáveis a surfar uma onda de poder manchada por petrodólares. Do ponto de vista da complacência, é difícil de explicar o comportamento do Banco de Portugal, da CMVM e da PGR. Mas é no poder político português que reside a face maior da vergonha, fascinado que sempre esteve ao serviço da normalização do poder político angolano. São incontáveis os negócios realizados com o regime de Angola por figuras de proa do PSD, PS e CDS, sempre com o discurso anticolonialista na ponta da língua nos momentos em que era necessário justificar os negócios realizados à custa da falta de liberdade de um povo.

Se Isabel dos Santos, constituída arguida na passa quarta-feira, não se apresentar de forma voluntária à justiça angolana, poderá ser emitido um mandado de captura internacional e a justiça portuguesa não pode lavar as mãos. Do injustificável. São muitos os que batem palmas ao Luanda Leaks mas não têm vergonha em ser cúmplices silenciosos perante a falta de interesse da justiça portuguesa no Football Leaks revelado por Rui Pinto. É curioso que Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos, aponte Rui Pinto como um dos responsáveis pelo aparecimento do Luanda Leaks. A seu tempo, far-se-á justiça à dimensão da coragem e relevância de Rui Pinto. Por-tu-gal, como Angola, também é palavra que muita gente devia ter dificuldade em soletrar.

Artigo publicado em “Jornal de Notícias” a 24 de janeiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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