No longínquo ano de 1992, Cavaco Silva decidiu aumentar brutalmente as propinas no ensino superior público, alegando que “os pobres estavam a pagar a educação dos ricos”. A reação dos estudantes não se limitou a travar a intenção inicial do governo, como ainda o fez cair e, sobretudo, impulsionou uma discussão alargada sobre o financiamento do ensino superior – incluindo quem é que paga o ensino de quem. É por isso que, perante as recentes notícias[1] sobre um possível descongelamento do valor a pagar pelos alunos para frequentar a universidade, podemos afirmar, categoricamente, que se trata de um retrocesso inaceitável.
Ao tempo do Cavaquistão[2], as propinas começariam com um valor inicial de 50 contos (250 euros) em 1992/93, até alcançar os 200 contos (mil euros) em 1994/1995 (com diferenças consoante se tratava de universidades ou politécnicos). Os sucessivos aumentos ao longo dos anos trouxeram-nos até aos 1097 euros em 2019, altura em que o acordo do Bloco de Esquerda com o governo permitiu congelar o valor. Inicialmente apontada como mecanismo de sustentabilidade financeiras das faculdades, e malgrado promessa atrás de promessa, a participação das famílias no orçamento das faculdades não se traduziu em avanços significativos na qualidade do serviço prestado, mas revelou-se extremamente eficaz como entrave ao acesso igualitário ao ensino superior[3].
Ao contrário do que afirmam Cavaco e seus discípulos, não é aumentando propinas que se introduz justiça no sistema – a distribuição de rendimentos opera-se através da política fiscal, e a imposição de valores pela frequência universitária penaliza sobretudo as famílias com rendimentos baixos e médios, para além de traduzir-se no aumento do abandono escolar[4]: em média, por cada mil alunos, 106 desistem do ensino superior por razões económicas[5]. O ciclo de exclusão é exacerbado nestes casos, porque aquela pessoa que não conseguiu terminar o seu curso terá mais dificuldade em pagar propinas ao agregado familiar do que teria caso concluísse a formação superior; ou iniciará a vida profissional com o ónus do endividamento, reduzindo, efetivamente, o orçamento disponível. Aliás, a primeira falácia que temos de desmontar é a de que frequentar a universidade é um privilégio individual, e não um mecanismo coletivo para melhorar os níveis de coesão, conhecimento, bem-estar e capacidade produtiva da sociedade como um todo. Aqui, tal como nos outros níveis, a educação é a chave para a transformação social, e o crescente número de novos alunos no ensino superior público (que representavam, em 2023, 80,6%[6] do total de inscritos pela primeira vez no ensino superior) torna ainda mais urgente a implementação de políticas que assegurem a continuidade destes estudantes no ensino superior, independentemente da sua situação económica.
Ou seja, o que deveríamos estar a discutir, agora e sempre, era o fim das propinas, não um eventual descongelamento de um valor que já não é, de modo algum, comportável ou aceitável em termos estratégicos. Não sejamos ingénuos; esta intenção surge num contexto de queda significativa da quota do ensino superior privado: se, em 1995, 29,1% dos novos inscritos pertenciam ao ensino privado, esse número caiu para 13%[7] em 2022. A receita é sempre a mesma: onerar os custos dos serviços públicos para que os privados possam cobrar por eles. A questão de fundo é, precisamente, que não podemos aceitar que o ensino superior seja moldado por uma lógica de mercado, que trata a educação como um bem transacionável e não como um direito fundamental.
A solução é clara, e o Bloco de Esquerda tem-na defendido com propostas concretas: ensino superior gratuito e universal, sem propinas em licenciaturas, cursos técnicos e mestrados integrados. Além das propinas, é necessário também eliminar outros custos ocultos, como as taxas de entrega de dissertações e teses, que continuam a ser um entrave para muitos estudantes de baixos rendimentos. E, claro, resolver problemas transversais, como a habitação, os transportes e os baixos salários das famílias, que se conjugam numa lógica de exclusão implacável, sobretudo para os estudantes deslocados.
A abolição das propinas garante que mais estudantes têm a oportunidade de concluir os seus estudos, promovendo um ensino superior público verdadeiramente inclusivo e acessível a todos. Se continuarmos a aumentar os custos da educação, estaremos a consolidar um sistema que serve as elites e marginaliza os mais desfavorecidos – por muito que nos tentem convencer do contrário, como se não andássemos há 30 anos a explicar-lhes por que é que Não Pagamos.
Notas:
[1]https://www.rum.pt/news/oe2025-governo-podera-avancar-com-descongelamento-das-propinas
[2]https://www.publico.pt/2003/10/21/jornal/quatro-leis-e-muita-polemica-entre-os-1200-escudos-e-a-propina-actual-206720
https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/recorda-se-no-twitter-cavaco-silva-pos-os-estudantes-universitarios-a-pagar-propinas/
[3]https://www.publico.pt/2017/03/10/sociedade/noticia/estudantes-pagam-300-milhoes-por-ano-em-propinas-1764675
