Não pagamos!

porRita Gorgulho

24 de setembro 2024 - 16:06
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Se continuarmos a aumentar os custos da educação, estaremos a consolidar um sistema que serve as elites e marginaliza os mais desfavorecidos. A abolição das propinas garante que mais estudantes têm a oportunidade de concluir os seus estudos, promovendo um ensino superior público inclusivo.

No longínquo ano de 1992, Cavaco Silva decidiu aumentar brutalmente as propinas no ensino superior público, alegando que “os pobres estavam a pagar a educação dos ricos”. A reação dos estudantes não se limitou a travar a intenção inicial do governo, como ainda o fez cair e, sobretudo, impulsionou uma discussão alargada sobre o financiamento do ensino superior – incluindo quem é que paga o ensino de quem. É por isso que, perante as recentes notícias[1] sobre um possível descongelamento do valor a pagar pelos alunos para frequentar a universidade, podemos afirmar, categoricamente, que se trata de um retrocesso inaceitável.

Ao tempo do Cavaquistão[2], as propinas começariam com um valor inicial de 50 contos (250 euros) em 1992/93, até alcançar os 200 contos (mil euros) em 1994/1995 (com diferenças consoante se tratava de universidades ou politécnicos). Os sucessivos aumentos ao longo dos anos trouxeram-nos até aos 1097 euros em 2019, altura em que o acordo do Bloco de Esquerda com o governo permitiu congelar o valor. Inicialmente apontada como mecanismo de sustentabilidade financeiras das faculdades, e malgrado promessa atrás de promessa, a participação das famílias no orçamento das faculdades não se traduziu em avanços significativos na qualidade do serviço prestado, mas revelou-se extremamente eficaz como entrave ao acesso igualitário ao ensino superior[3].

Ao contrário do que afirmam Cavaco e seus discípulos, não é aumentando propinas que se introduz justiça no sistema – a distribuição de rendimentos opera-se através da política fiscal, e a imposição de valores pela frequência universitária penaliza sobretudo as famílias com rendimentos baixos e médios, para além de traduzir-se no aumento do abandono escolar[4]: em média, por cada mil alunos, 106 desistem do ensino superior por razões económicas[5]. O ciclo de exclusão é exacerbado nestes casos, porque aquela pessoa que não conseguiu terminar o seu curso terá mais dificuldade em pagar propinas ao agregado familiar do que teria caso concluísse a formação superior; ou iniciará a vida profissional com o ónus do endividamento, reduzindo, efetivamente, o orçamento disponível. Aliás, a primeira falácia que temos de desmontar é a de que frequentar a universidade é um privilégio individual, e não um mecanismo coletivo para melhorar os níveis de coesão, conhecimento, bem-estar e capacidade produtiva da sociedade como um todo. Aqui, tal como nos outros níveis, a educação é a chave para a transformação social, e o crescente número de novos alunos no ensino superior público (que representavam, em 2023, 80,6%[6] do total de inscritos pela primeira vez no ensino superior) torna ainda mais urgente a implementação de políticas que assegurem a continuidade destes estudantes no ensino superior, independentemente da sua situação económica.

Ou seja, o que deveríamos estar a discutir, agora e sempre, era o fim das propinas, não um eventual descongelamento de um valor que já não é, de modo algum, comportável ou aceitável em termos estratégicos. Não sejamos ingénuos; esta intenção surge num contexto de queda significativa da quota do ensino superior privado: se, em 1995, 29,1% dos novos inscritos pertenciam ao ensino privado, esse número caiu para 13%[7] em 2022. A receita é sempre a mesma: onerar os custos dos serviços públicos para que os privados possam cobrar por eles. A questão de fundo é, precisamente, que não podemos aceitar que o ensino superior seja moldado por uma lógica de mercado, que trata a educação como um bem transacionável e não como um direito fundamental.

A solução é clara, e o Bloco de Esquerda tem-na defendido com propostas concretas: ensino superior gratuito e universal, sem propinas em licenciaturas, cursos técnicos e mestrados integrados. Além das propinas, é necessário também eliminar outros custos ocultos, como as taxas de entrega de dissertações e teses, que continuam a ser um entrave para muitos estudantes de baixos rendimentos. E, claro, resolver problemas transversais, como a habitação, os transportes e os baixos salários das famílias, que se conjugam numa lógica de exclusão implacável, sobretudo para os estudantes deslocados.

A abolição das propinas garante que mais estudantes têm a oportunidade de concluir os seus estudos, promovendo um ensino superior público verdadeiramente inclusivo e acessível a todos. Se continuarmos a aumentar os custos da educação, estaremos a consolidar um sistema que serve as elites e marginaliza os mais desfavorecidos – por muito que nos tentem convencer do contrário, como se não andássemos há 30 anos a explicar-lhes por que é que Não Pagamos.

Notas:

Rita Gorgulho
Sobre o/a autor(a)

Rita Gorgulho

Designer e professora
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