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Não há envelope financeiro nem mais democracia

Mais de metade dos 278 municípios do continente decidiram rejeitar, no todo ou em parte, a transferência de competências da administração central em 2019, no âmbito do chamado processo de descentralização acordado entre PS e PSD.

Em causa estiveram 11 decretos-lei setoriais que transferem responsabilidades em áreas como as da habitação, justiça ou vias de comunicação.

Perante a falta de clarificação pelo Governo das implicações em termos de recursos financeiras, humanos e organizacionais destas transferências, fizeram bem os municípios. Virão às assembleias municipais, em breve, mais 10 diplomas deste pacote de municipalização, em áreas não menos importantes que as anteriores, como as da cultura, educação e saúde.

Não faria qualquer sentido, já depois dos orçamentos municipais para 2019 aprovados, as Câmaras assumirem novas responsabilidades sem saberem com o que podiam contar. Os autarcas que caíram na ilusão de virem a receber um envelope financeiro associado às novas competências municipalizadas, ficaram esclarecidos com as declarações do Secretário de Estado das Autarquias Locais, na última audição na 11ª Comissão parlamentar, de Ambiente Descentralização e Poder Local, no passado dia 30 de janeiro.

Com uma clareza meridiana, que lhe agradecemos, o Secretário de Estado confirmou que não vai haver envelopes financeiros, nem recursos humanos associados às competências. As autarquias que aceitarem as transferências vão ter de gerar as suas próprias receitas, com exceção da educação e saúde, áreas em que as autarquias receberão os montantes para pagar vencimentos ao pessoal não docente nas escolas e não médico nos centros de saúde que contratarem.

No entanto, a lógica do Governo, apoiado no acordo PS/PSD, é o de reduzir despesa ao passar responsabilidades para as autarquias, pelo que se advinha que o mesmo acontecerá na educação e saúde. Quais serão as consequências? Diminuição da qualidade dos serviços prestados, novas taxas sobre os munícipes e concessão de alguns desses serviços a privados.

Trata-se de uma irresponsabilidade e de um absurdo. Uma verdadeira descentralização não pode dar origem e ficar associada a serviços com menor qualidade, infraestruturas mais degradadas, privatização de competências e mais custos para os munícipes. Também não deve criar dificuldades acrescidas às autarquias, com o risco evidente de perda de autonomia financeira. Definitivamente, isto não é descentralização.

A crise está instalada em todo este processo e cada vez mais gente, inclusive autarcas, está a perceber que esta descentralização é um embuste, nasceu torta e tarde ou nunca se endireitará. Segundo um recente inquérito realizado pelo ISCTE, 84% dos presidentes de Câmara querem a regionalização com órgãos próprios eleitos diretamente e 77% consideram que deve ser no mais curto prazo.

Os autarcas sabem que há problemas que não encontram uma boa resposta à escala municipal e que lhes está a ser dado um presente envenenado com o nome de descentralização. A criação de regiões administrativas com legitimidade democrática própria é necessária porque o centralismo está a gerar cada vez mais desigualdades e injustiças no país, desde logo na distribuição territorial de recursos e da riqueza produzida por todos nós.

O ato falhado do acordo de cúpula entre PS e PSD vai ter de ser superado porque não podemos abdicar de ter um país mais descentralizado, mais democrático, com melhores serviços públicos e com mais participação cidadã. O movimento em defesa de mais Estado social e de uma regionalização democrática, que confira capacidade de decisão às populações sobre as estratégias de desenvolvimento para os respetivos territórios, é a alternativa que cresce e que se está a impor como a solução que a Constituição preconiza há décadas.

Sobre o/a autor(a)

Docente universitário IGOT/CEG; dirigente da associação ambientalista URTICA. Dirigente do Bloco de Esquerda
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