O Relatório das Carreiras Médicas de 1961, o embrião do que anos mais tarde viria a ser o Serviço Nacional de Saúde, retratava assim a realidade desse tempo em que o público era suplementar e o privado social eram dominantes:
“As crianças não têm a mínima assistência; morrem com as doenças mais banais, que alguns comprimidos sulfonamidas, uma dieta adequada ou qualquer outro tratamento simples curariam em poucos dias”.
No mesmo relatório lê-se ainda:
“Morreram ali [num concelho do interior do país] 150 pessoas, das quais 86,6% sem qualquer assistência médica (...) A percentagem de portugueses que morre sem assistência médica é extremamente elevada em muitas áreas rurais”.
Era assim o triste país em que o Estado assumia um mero papel supletivo ao das instituições particulares e que entregava à caridade a prestação de cuidados de saúde do mais pobres.
Um país em que a vida acabava cedo porque se vivia uma vida inteira sem acesso à saúde, se vivia com medo da doença. A construção do SNS trouxe-nos futuro. Prolongou a nossa esperança média de vida, impulsionou a investigação, a nossa qualificação e bem estar individual e coletivo.
O acesso à saúde que promoveu permitiu um gigantesco passo civilizacional. Transportou-nos dos piores registos da saúde materno-infantil da Europa para os mais avançados. O SNS pulsa e respira a força da nossa democracia. Trata todas as pessoas, todas as condições económicas e idades. O SNS está sempre lá. É igualdade, segurança, solidariedade interclassista, combate à desigualdade social.
O SNS é vida. Nascer e dar à luz passou a ser seguro. A extensão e alargamento do plano nacional de vacinação, os rastreios, o tratamento numa qualquer emergência. É o compromisso de lutar com todos os meios por todos os doentes, por todas as vidas. Das portas abertas que acolhem todas as emergências.
O SNS é esperança. É a prova que nos conseguimos organizar para criar instituições desmercadorizadas, inclusivas e democráticas, que não nos temos de conformar com a desigualdade, a indiferença individualista e as fronteiras de classe. Toda a tabela de IRS cabe no mesmo serviço, na mesma unidade de internamento. Porque quando o assunto é mesmo sério, é no SNS que toda a gente encontra o seu porto seguro.
O SNS é liberdade. É a oferta pública que cria a escolha, que encontra alternativas de tratamento. É o SNS que garante o planeamento familiar, o acesso gratuito à contracepção, a autodeterminação de todos os corpos, do género, à interrupção voluntária da gravidez. A certeza de que se acabou o vão de escada e a humilhação da mulher. E é a ele que cabe garantir, porque é assim que a lei determina, que se a dor se tornar insuportável temos a liberdade, o direito de parar o nosso sofrimento inútil, de morrer com dignidade.
É este sistema de saúde universal que faz um pequeno mas maravilhoso país como Portugal ter indicadores de saúde que a principal potência económica mundial, os Estados Unidos da América.
Apesar de gastar 17% do seu PIB em saúde, os EUA continuam a ter 9% da população sem qualquer tipo de cobertura de cuidados de saúde: 30 milhões de pessoas. A esperança média de vida é das mais baixas da OCDE, inferior em 5 anos à registada em Portugal. Os EUA são o 13º país da OCDE com mortalidade infantil mais elevada e em que se registam mais mortes evitáveis. Maus indicadores que abandonámos há muito.
O Serviço Nacional de Saúde é um pilar estrutural, identitário, da nossa República. Salvá-lo é o ponto de partida de qualquer programa de esquerda, do qual nunca abdicaremos. Independentemente do preço a pagar por ele. O Bloco já pagou um elevado preço. Valeram a pena todos os combates, todos os chumbos. A democracia portuguesa, tal como a concebemos, não existe sem o Serviço Nacional de Saúde.
Não está tudo bem, e não é de agora. A pressão contínua para reduzir a despesa estrutural produziu anos de desinvestimento e gradual privatização do setor da saúde. A despesa pública nominal com a saúde não tem acompanhado o crescimento do PIB, aumentou a externalização e a contratação com privados. Mais de metade do que é atualmente orçamentado para a saúde é dirigido para a aquisição de bens e serviços ao privado. O acesso à saúde piorou.
Portugal não tem investido o necessário no Serviço Nacional de Saúde e nos seus profissionais. Não cuida de quem cuida de nós. Os profissionais de saúde, os médicos, os enfermeiros, os técnicos de saúde e diagnóstico, os assistentes operacionais e administrativos, que constroem o SNS todos os dias devem ser valorizados. É-lhes devido um salário justo, uma carreira digna e tempo para viver, não se deve menos a quem atribuímos a enorme responsabilidade do nosso bem estar.
Para garantir o acesso a toda a gente a despesa vai crescer. Esse crescimento é sinal do sucesso do próprio SNS e da evolução científica. Doenças mortais tornaram-se crónicas, há mais prevenção e diagnóstico. Vivemos mais tempo. Apenas um serviço público de saúde robusto permite aumentar eficazmente a resposta de que a sociedade precisa.
No debate marcado pelo Bloco sobre a política de saúde do Governo da AD houve quem propusesse – uns com mais eufemismo, outros com mais determinação – que o Serviço Nacional de Saúde fosse diminuído e a saúde fosse gradualmente entregue ao privado. Mais convenções com maternidades privadas, abertura dos centros de saúde à gestão privada, vouchers e cheques para colocar na conta do operador de saúde privado, mais pagamento por exames e por cirurgias, mais PPP… A imaginação foi fértil. Buscou 1001 formas de agradar à Luz, à CUF, à Lusíadas. Só não se lembrou das cidadãs e dos cidadãos, para quem os serviços de saúde devem ser projetados.
Esse não é, nem de perto nem de longe, o nosso modelo. Não é o nosso horizonte. Por isso dizemos que é preciso um Plano de Emergência para salvar o SNS do Plano de Emergência do Governo.
Não importa de onde se vem e quanto se ganha: se o tratamento existe no SNS toda a gente tem acesso. E o SNS está na vanguarda dos cuidados de saúde. O melhor que há disponível é para toda a gente.
Intervenção de encerramento da interpelação parlamentar agendada para o dia 28 de junho de 2024 pelo Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda sobre a política de saúde do Governo.
