Não és tu, somos nós: o fracasso das políticas para migrantes

porRafael Pereira

13 de junho 2024 - 21:58
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Nenhuma pessoa no mundo é ilegal, ao contrário do que as nossas instituições e mesmo algumas figuras políticas muito próximas nos fazem parecer. Todos os seres humanos merecem condições dignas para viver e têm o direito de procurar uma vida melhor em qualquer lugar do mundo.

No início deste mês deram-se algumas alterações no plano europeu e também no nacional relativamente à estratégia para as migrações, principalmente para as imigrações. A ideia era então conseguir resolver a curto prazo o problema de uma chegada crescente e constante de imigrantes que muitas vezes permanecem irregularizados durante meses a fio sem qualquer resposta. Confiar em um governo da direita política para o efeito foi um erro crasso, porque apenas poderá ter contribuído para o agravar do problema.

O Plano de Ação para Migrações fez questão de introduzir algumas mudanças a uma lei de 2007 - que entretanto foi alterada já em 2017 com o antigo primeiro-ministro António Costa - nomeadamente a respeito do regime de manifestação de interesse e de mera promessa de contrato de trabalho, que tornava legítimo e suficiente o pedido para obtenção de autorizações de residência. Mesmo o regime excecional que permitia ao imigrante ver a sua situação regularizada caso se verificassem 12 meses de conformidade com os regimes da Segurança Social foram alterados. O Governo achou que tudo estes regimes agora findos seriam uma forma de fazer aumentar desmedidamente os pedidos de regularização e de entrada em Portugal, e que consequentemente “são em larga medida um instrumento utilizado por redes de criminalidade ligadas ao tráfico de seres humanos e ao auxílio à imigração ilegal” como se escreveu na página do diário da república no momento da publicação do decreto-lei. Estava (e está) profundamente equivocado.

Está profundamente equivocado desde logo porque não é o regime da manutenção de interesse que aumenta os circuitos de tráfico humano, pelo contrário. Sabemos que quantos menos sistemas de entrada regular existirem na lei, mais facilmente serão criados outros tipos de sistemas à responsabilidade não do imigrante, mas sim das entidades do tráfico que criarão todo o tipo de contratos de trabalho, aliciando imigrantes para condições para as quais nem eles nem o próprio governo poderão controlar.

Está também equivocado na ideia de que é com esta alteração que o número de pedidos de regularização irá diminuir. O problema da imigração em Portugal não é propriamente a entrada desmedida de pessoas, é a sua sobre-estadia, isto é, pessoas que entram com uma autorização de residência que depois expira o seu prazo. Isto não é uma culpa atribuível aos imigrantes, mas sim às autoridades administrativas. Foi um excelente passo a extinção do SEF em 2023, até porque confundir administração de migrações com policiamento é um erro crasso, mas as atuais autoridades competentes para o efeito têm claramente um défice de resposta pela falta de meios. Se existem cerca de 500 mil pedidos de regularização, a AIMA atualmente só consegue responder a algumas centenas deles por dia, o que atrasa claramente a vida de todas as pessoas envolvidas.

É muito ilustrativa esta ideia da direita política de colocar o ónus no imigrante e não nas autoridades competentes para a resolução do seu problema, o que também vai muito além da mera regularização. Mesmo quando falamos de processos de integração das famílias migrantes em Portugal é sempre colocada uma sobre-responsabilidade e uma culpa nos próprios por não se conseguirem integrar, ao invés de pensarmos em estratégias nacionais e governativas para expandir o ensino básico de português, a inserção destas famílias em vários contextos e escolas. Existem certamente muitos protocolos que poderiam ser pensados para uma maior união entre todas as pessoas que escolhem Portugal para trabalhar e passar as suas vidas.

Porém, seria ingénuo pensar que é um problema exclusivo de Portugal. Apesar de se ter passado das grandes aberturas dos jornais para meros rodapés, a crise de refugiados no mediterrâneo não acalmou nem se tornou menos urgente de resolver. A Europa reconhece essa questão e foi por isso que, já no final desta legislatura, fez aprovar o Pacto das Migrações e Asilo.

É um pacto muito difícil de defender. Desde logo, é um pacto que força todos os estados-membros a um regime de solidariedade e partilha de responsabilidades, o que torna tudo um pouco deprimente, no sentido em que não foi preciso este regime obrigatório para a questão dos refugiados ucranianos aquando do despoletar da guerra de 2022, mas é necessário implementá-lo aqui com refugiados que há mais de 10 anos vêm de outras regiões do mundo.

É também um pacto que se preocupa primeiro com questões fronteiriças do que com seres humanos em condições deploráveis, que nos chegam pelos piores motivos possíveis e mesmo assim as condições de acesso que lhes são dadas são insuficientes. É preciso ter noção de que a União Europeia celebrou acordos com países como a Líbia para retenção temporária destas pessoas, país que não só não respeita os mais básicos preceitos do direito internacional e dos direitos humanos nos seus campos de retenção, como também parece existir uma aceitação tácita do governo líbio das mais variadas expressões de tortura, extorsão, trabalho forçado e até execuções.

Assim, será importante reter algumas ideias. Em primeiro lugar que nenhuma pessoa no mundo é ilegal, ao contrário do que as nossas instituições e mesmo algumas figuras políticas muito próximas nos fazem parecer. Todos os seres humanos merecem condições dignas para viver e têm o direito de procurar uma vida melhor em qualquer lugar do mundo e de ser tratados da forma mais cordial e humana possível. Em segundo lugar, é preciso perceber que a Europa e Portugal - nos seus governos, nas suas leis e nas suas instituições - precisam de fazer um melhor trabalho. É urgente a distribuição de meios humanos, digitais e financeiros para que o trabalho de regularização e tratamento dos imigrantes possa ser feito o mais célere e ordeiramente possível, garantindo que o processo não fique pendente durante anos, causando pressão no próprio sistema e na pessoa imigrante que se vê completamente desprotegida.

Para um povo que sempre se viu forçado a emigrar para procurar melhores condições de vida, Portugal tem a responsabilidade de dar o exemplo nestas matérias. É preciso uma política exemplar e uma reflexão social profunda se queremos realmente integrar pessoas que escolhem o nosso país para nele trabalhar, ter filhos e dar uma nova vida.

Rafael Pereira
Sobre o/a autor(a)

Rafael Pereira

Estudante de sociologia deslocado para Coimbra e ativista interseccional
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