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Não deixamos ninguém para trás?

“Não deixar ninguém para trás” não pode ser apenas uma frase propagandística como tem sido. Regatear apoios sociais para poupar e fazer boa figura na Europa ou por mero tacticismo deixa propositadamente muita gente para trás na altura em que mais precisam de apoio.

Começo este texto com uma citação do primeiro-ministro, António Costa, em maio do ano passado, numa altura em que efeitos sociais e económicos da pandemia já se anteviam sérios e prolongados. Afirmou o primeiro-ministro que a Segurança Social pública é o instrumento para “não deixar ninguém para trás nesta crise”.

O primeiro-ministro foi perentório e a sua afirmação quase fazia lembrar Mário Draghi, o antigo presidente do BCE, quando afirmou que faria tudo para salvar o euro. Não tendo resolvido muitos dos problemas do euro, Mário Draghi salvou-o da sua autodestruição. Mas será que o Governo não deixou ninguém para trás?

Na semana passada o governo decidiu enviar para o Tribunal Constitucional as alterações aos apoios sociais aprovadas pela Assembleia da República. Neste caso, a única alteração foi o ano de referência para cálculo do apoio a atribuir a trabalhadores independentes e sócios gerentes - 2019 em vez de 2020. Claro que isso faz toda a diferença no apoio a receber. Sem essa alteração, milhares de pessoas não receberiam mais do que o valor mínimo do apoio: 219 €.

É preciso lembrar que o rendimento destes trabalhadores, cujas atividades foram encerradas por determinação do governo, caiu e muito em 2020. Mas o governo esconde-se por detrás de uma polémica jurídica para disfarçar a insensibilidade e o maquiavelismo de querer criar uma crise artificial utilizando como pretexto o apoio a algumas das maiores vítimas da crise.

“Não deixar ninguém para trás” é isto?

A verdade é que o governo, se quisesse, poderia ter evitado toda esta polémica, alterando, por sua iniciativa, a medida em vigor no mesmo sentido que fez o parlamento. E a fazer fé nas palavras do ministro das finanças, há dinheiro e o governo até acha a medida boa. É o que se depreende quando João Leão afirma que “o que está aqui em causa não é a bondade da medida em concreto, mas o princípio que foi seguido”. Mas o governo, achando boa a medida, preferiu o drama à alteração dos critérios do apoio.

Esta guerra contra os apoios sociais por parte do governo e do PS é deplorável. Usa o apoio a quem mais precisa para mesquinhos objetivos políticos: a tão desejada maioria absoluta falhada em 2019, que não deixou de ser o desejo de António Costa e do PS. A verdade é que as medidas de apoio social criadas para socorrer à crise social têm sido sempre muito insuficientes e, pior, não chegam a toda a gente que delas precisa.

Mas há outras medidas que deixam gente para trás. Cada vez mais vemos gente que, por terem tido a infelicidade de estarem desempregados e já sem subsídio antes da entrada em vigor do orçamento do estado, ficam de fora do novo apoio criado por este.

A crise social está a ser dura e durará por tempo indeterminado. Os problemas com o fornecimento de vacinas e a confiança nestas podem atrasar ainda mais a recuperação, único fator que pode trazer estabilidade e emprego às pessoas.

“Não deixar ninguém para trás” não pode ser apenas uma frase propagandística como tem sido. Tem de ter concretização prática nas políticas. Regatear apoios sociais para poupar e fazer boa figura na Europa ou por mero tacticismo deixa propositadamente muita gente para trás na altura em que mais precisam de apoio.

Sobre o/a autor(a)

Deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia Regional dos Açores e Coordenador regional do Bloco/Açores
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