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Não basta alecrim, vá um coração para o Brasil

Há 40 milhões de votos sem candidato, é esta gente que tem de juntar-se e reclamar o seu Brasil, pôr uma cruz no nome de Haddad para não a pôr na campa de um país, da democracia, para não matar de novo quem já morreu nas escaladas de violências, no tanto mal que o Brasil sofreu na sua história.

Pelas famílias brasileiras, aquelas que existem mesmo, não as do esquema que Bolsonaro inventou. Famílias com uma mãe, um pai, uma mãe e um pai, duas mães, dois pais, avós, unicórnios, o que for. Famílias divorciadas, como a do próprio Bolsonaro, cuja religião do Deus em nome do qual diz e faz as maiores barbaridades condena o fim do laço matrimonial, nem o reconhecendo. Pelo respeito pelo que cada um faz com os genitais, a sós, com elas, com eles, com elas e com eles, como toda a gente respeitou o que Bolsonaro fez com os seus quando andou a comer “gente”, condenando apenas que para o engate tenha usado o dinheiro que lhe fora dado no auxílio-moradia, destinado a outra coisa. Por amor de Deus, de Jeová, de Alá, dos deuses todos, dos orixás, do materialismo dialéctico, do Pato Donald, de golfinhos bebés, do Songoku, de Paris à chuva e de água de côco no calçadão, não se vote neste monstro.

Basta. Cinquenta ataques nos últimos dias, intimidações, marchas, inúmeros relatos a correr redes sociais de gente que já se vê ameaçada, psicopatas que andaram pelas ruas a distribuir capim a nordestinos e a negros, homens que viram gays e disseram que no dia 28 tudo aquilo ia acabar. Basta. Tolerância zero para com o fascismo, tolerância zero para com este repugnante discurso de alteridade. Há um eles e nós, sim, mas nós não somos os brancos, nós não somos os ricos, nós não somos os do sul, não nós somos os heteros, nem que sejamos brancos ricos do sul heteros. Há um eles e nós que traça a linha entre quem se põe do outro lado da barricada em luta activa pelo ódio, em luta activa contra os direitos humanos, baluarte de qualquer sociedade com saúde.

Até podemos ser azuis às riscas, é uma obrigação humana sentir nojo de cada vez que alguém se atreve a tratar alguém como um animal, mais ainda se o faz pela cor, tanto ainda se o faz pelo lugar de onde vem. E, ufanos, lá tentam a hierarquia, branco em cima de negro, o regresso ao passado não por incompreensão do passado, mas porque ele é tão mais confortável para um branco. Não o vemos, pois não? Parecemos todos anémicos, ninguém nos confunde com funcionários de lojas, ninguém olha para nós quando desaparece o celular da sala, ninguém duvida da nossa inteligência. É confortável podermos falar sem uma carga de suspeita em cima, o problema é isso ser um privilégio. E não se trata aqui de se mandar o privilégio ao ar, mas de reconhecer a doença que está nesta realidade. Um branco que olha com sobranceria para um negro, um índio, um verde às bolinhas, está do outro lado da barricada.

Acabe-se pois com o discurso horripilante dos bolsonaristas. Calem-se pois os brancos que nos querem a todos nesse poço. Não existem brancos contra pretos, existem fascistas contra pretos e, nessa como noutra, todos, brancos, pretos, índios, qualquer coisa, devemos estar contra o fascismo, pela saúde do planeta.

Parece irónico estarmos em 2018 ainda a discutir estas estupidezes. Alguém queimou as prateleiras onde estavam os livros de história do século XX? É possível olhar para aquilo e não ver o horror? Os campos de concentração não ensinaram nada? Sete milhões de judeus mortos não serviram para nada? Deixámos mesmo que duas guerras destruíssem o mundo sem que tivessem deixado, ao lado da devastação, a certeza absoluta de que aquilo era o cancro do planeta? Há mesmo quem se estimule com aquilo, queira aquilo, babe por aquilo?

Há mesmo metade do Brasil a votar num homem que, ao ser perguntado pela saúde no país, a única parvoíce que tem a dizer é que há muitos prematuros no Brasil e que se resolve isso enviando as grávidas, cheias de cáries, imagine-se, para o dentista? Mas o que é isto? Chegámos a um ponto em que meio país, meio continente, acha aceitável que não se tenha de justificar nada, vota num psicopata, vota num idiota? Chegámos ao ponto em que alguém acha porreiro desenhar uma suástica numa parede branca e escrever “morte aos nordestinos”? Teria graça de tão primário, de tão bacoco, de tão pateta, mas é a realidade, e portanto não há piada, há desespero. Desespero. Não é só o medo de um confronto a dois, é o adivinhar do que aí vem. E é não querer que a vida seja a luta pelo que já foi conquistado, pelo que já parecia dado adquirido, pelo que é tão básico que devia ser unânime.

É isso que choca no Brasil: a falta de unanimidade pelo que devia ser tão óbvio, a crueldade, a incapacidade de aprender com as atrocidades do passado. E não me refiro sequer a quem vota Bolsonaro por se achar descrente com o sistema, esse é outro problema, prende-se com a incapacidade de analisar o seu papel, com engolir-lhe as lágrimas de crocodilo, o discurso hipócrita que devia definhar, ser empurrado para o riso, lugar a que pertence. Não me refiro a quem vota Bolsonaro por ódio ao PT, esse é um maniqueísmo que falha ao entender o que é o mal maior, o que pode levar o Brasil para o abismo. Não me refiro a quem está sossegado em casa e o vê aparecer na televisão sem perceber exactamente o que é que aquele monstro significa. Também os há, devem ser ganhos, o tempo é pouco, a pressa urge. Mas refiro-me aos bolsonaristas declarados, às manifestações de violência infames com que o Brasil nos tem desesperado. Não é o desespero de estar a um passo do abismo, é o desespero de estar num comboio sem travões que vai cair lá. Um país enorme, começar por quem, convencer quem? Faltam quantos? Como vão as sondagens? Viramo-nos para a Amazónia, para Santa Catarina (um horror), para o que sobra do nordeste (ainda são uns milhões)? Imaginar-se-ia que a campanha dos bolsonaristas seria o seu boicote, que faria por si o seu caminho, que qualquer pessoa provida de alguma coisa no tórax sentiria a náusea. Mas não, o populismo acicata, violência entretém, traz violência, violência combate o tédio. Mas política não serve para entreter, poder não serve para entreter, a vida dos outros e de um país não serve para entreter.

O Brasil é melhor do que Bolsonaro e parte daqueles 49 milhões também. Este Brasil entregue aos lobos é também o Brasil de Caetano, Chico Buarque, Marielle, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Maria Bethânia, Tom Jobim, Cartola, Leminski, Clarice Lispector, Veríssimo, Graciliano Ramos, Elza Soares, Machado de Assis, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Milton Hatoum, Marcelo Freixo e tantos, tantos outros. Gente que fez e faz um país, gente que marca uma cultura. É um Brasil cheio, que quer país, que quer futuro, que rejeita a escuridão do desespero, a escalada da violência, a amorfia política, social, intelectual.

Odeie-se o PT quando se quiser, odeie-se Haddad quando se quiser, mas não é hora de joguinhos, de vinganças, de rancores, de mesquinhez. Mulheres, pretos, LGBTs, pobres do Brasil, é votar Haddad como se as vossas vidas dependessem disso, porque é mesmo possível que dependam. Homens, brancos, heteros, ricos, é votar Haddad porque a dignidade, a decência, a humanidade, a luz que há em nós e que nos distingue dos bichos, são mais importantes do que o privilégio rasca que se possa sentir de vez em quando. É votar Haddad para que, daqui a uns anos, os putos que andam na escola não sintam o nojo e a vergonha que trazem tantos episódios negros do passado, que nos parecem tão distantes e afinal estão aí. É votar Haddad contra aquelas paradas fascistas que temos visto, gente aos berros com um coração no meio que não serve para mais do que bombear o sangue.

Faltam duas semanas, não é demasiado tarde. Bolsonaro teve mais 18 milhões de votos do que Haddad, mas os 31 milhões de Haddad são para ficar intactos e há que acrescentar os 13 milhões de Ciro, os 5 milhões de Alckmin, os 7 milhões de nulos, os 3 brancos, os quase 30 milhões de abstenção. Há 40 milhões de votos sem candidato, é esta gente que tem de juntar-se e reclamar o seu Brasil, pôr uma cruz no nome de Haddad para não a pôr na campa de um país, da democracia, para não matar de novo quem já morreu nas escaladas de violências, no tanto mal que o Brasil sofreu na sua história. E os próprios 49 milhões de Bolsonaro são disputáveis. Não me parece humanamente possível que, em 2018, exista tal prepotente escalada do fascismo. Há um aproveitamento político de fenómenos que extrapolam Bolsonaro, Lula, o próprio PT, que reduzem a política e a disputa do poder a um bacoco espectáculo mediático, a paradas, a canções, a frases que só são ácidas porque não têm contexto, pensamento, razão de ser. A vida deste Brasil e deste mundo também está na mão desses milhões, espere-se que muitos deles, nestas semanas de campanha, se apercebam do mal que Bolsonaro é, da violência que se intensificou já em nome dele, de gente que acha que já tem impunidade e legitimidade para bater, para ameaçar, e que por isso já começou o descalabro.

Não é PT contra Bolsonaro, não é sequer Haddad contra Bolsonaro, é um homem contra o inferno, um país contra a barbárie. Não votar Haddad porque não se quer votar PT não é uma facada no PT, é uma facada no Brasil, e uma facada literal em pretos, LGBTs, pobres, mulheres. Votar nulo ou branco não é, por isso, anti-petismo, é anti-democracia, anti-progresso, é pro-abismo. Há que ganhar esses votos para que possamos finalmente dormir descansados ao ver que é Haddad e não um monstro quem se senta no Planalto.

Pois é, 2018 e o inenarrável nas páginas dos jornais, o mundo em transe e em suspense a assistir ao inominável. O retrocesso está diante dos nossos olhos, cada brasileiro terá uma pequena arma nas mãos no dia 28. Mas o mal não é dali, isto não diz só respeito a quem diz “ônibus”, desistir do Brasil é desistir de tudo, é desistir do mundo, é desistir de todos. 2018 e alecrim não chega, o Brasil está a precisar de estômago, está a precisar de coração.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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