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Nada mudará na habitação, mas haverá confronto para que mude e confronto quando mudar

Um governo de esquerda teria certamente de enfrentar a hostilidade presidencial de Marcelo, o lóbi dos proprietários e a barragem comunicacional sobre a “propriedade”, mas faria o oposto, nos conteúdos, do que o PS propõe com este programa.

Nada mudará nos problemas da habitação com este pacote do Governo. As casas continuarão a ser um ativo para os mercados internacionais, as rendas em Portugal seguirão sendo das mais altas da Europa, com preços pornográficos face aos salários médios, as pessoas com crédito no banco vão agravar a sua aflição. Ter uma vida sem sobressaltos e sem medo de ficar sem teto continuará a ser uma miragem para centenas de milhares de pessoas.

O veto do Presidente reforça o isolamento do Governo, que insiste obstinadamente num pacote legislativo que não responde pela habitação. Marcelo chama a atenção para a ausência de investimento público e para a inconsequência de várias medidas. Mas não se incomoda com os benefícios fiscais ao imobiliário e com a ausência de regulação para travar a expansão do Alojamento Local (AL).

Tirou ainda do armário o velho esqueleto direitista sobre os “pactos de regime”. Um governo de esquerda teria certamente de enfrentar a hostilidade presidencial de Marcelo, o lóbi dos proprietários e a barragem comunicacional sobre a “propriedade”, mas faria o oposto, nos conteúdos, do que o PS propõe com este programa.

O Mais Habitação incentiva a construção privada, diminui exigências para promotores imobiliários, brinda-os com menos impostos, mantém benefícios fiscais indefensáveis para residentes não habituais, perpetua os vistos gold mesmo sabendo-se como são utilizados para a lavagem de dinheiro, não aposta no investimento público e na provisão pelo Estado de casas para viver.

Os 26 mil fogos prometidos através do programa 1.º Direito, para o qual irá parte do dinheiro do PRR, não serão construídos até 2024. E já se sabe, entretanto, que as carências habitacionais extremas são em dimensão muito superior: pelo menos 77 mil famílias a viver em condições indignas. Ao mesmo tempo que se somam privações, o negócio imobiliário, com preços de luxo, vai de vento em popa (mais 4% do que no ano passado).

O anúncio do arrendamento forçado de casas deixadas vazias pela especulação ou pela incúria não passou de um fogacho inconsequente. Afinal, de um universo inicialmente identificado como abrangendo potencialmente 700 mil casas vazias, apenas 9.366 poderiam agora, eventualmente, preencher as condições para ser submetidas ao regime, mas o PS quis esvaziar ainda mais a medida, colocando uma série de entraves sobre a sua natureza “excecional” e “supletiva” que farão com que, no final das contas, esta seja na prática inaplicável ou de concretização nula.

No Alojamento Local, que tem canibalizado os fogos disponíveis e contraído a oferta de arrendamento para habitação permanente, o programa foi de recuo em recuo. Na sua versão final, a taxa sobre os AL passou para menos de metade (de 35% para 15%) e o número de licenças não diminui até 2030, porque só nessa altura serão reapreciadas.

Ou seja, a pressão sobre os centros das cidades vai manter-se e não haverá retração do número de casas retiradas à habitação para o negócio do turismo. As unidades de alojamento local não param de aumentar. Com 120 mil unidades em agosto, o número subiu quase 12% desde fevereiro. No Porto, os anúncios de AL aumentaram 16% no segundo trimestre deste ano. Os centros das cidades seguirão, pois, transformando-se num imenso parque para turistas.

Há alternativas e haveria muitas mudanças a fazer no programa. Mas o PS não pretende alterar uma vírgula. O direito à habitação continuará submetido à lógica do mercado que o nega para uma grande fatia da população. Se nada se moverá no Parlamento, que a força dos protestos já convocados para 30 de setembro force ao menos o reconhecimento do óbvio: precisávamos mesmo de uma grande transformação nas políticas públicas e ela só acontecerá vencendo a cisma da maioria absoluta.

Artigo publicado em expresso.pt a 23 de agosto de 2023

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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