Está aqui

Não é aqui

Choque. E continua a não haver tempo para grandes enquadramentos. Reage-se à flor da pele às imagens. Vê-se a luta pela sobrevivência e não se resiste a reiterar agora já quase triunfalmente, apesar do choque genuíno, como quem vê as suas certezas reconfirmadas: "já se sabia que ia ser assim, eles precisam de quem os mande... Coitadinhos."

Choque. E ajuda-se para a conta do rodapé porque eles são coitadinhos ou não se ajuda porque a conta do rodapé acabará na barriga de algum rico porque eles não se sabem governar.

Outros choques. As imagens chocantes, mais tarde, serão submersas nos telejornais por outros choques, talvez menos chocantes mas merecendo sempre o mesmo tom chocado, e irão encaixar-se num cantinho vago na memória. Restará ainda qualquer coisa vaga. Um incómodo. Coitadinhos. Mas não é aqui. É lá. E lá eles são assim. No meio deste incómodo sente-se ao mesmo tempo que podia ser aqui e que não podia ser aqui.

Somos seres frágeis assertividades fingidas e talvez precisemos de acreditar que aqui seria tudo diferente. Aqui pode ser apenas um Japão onde tal magnitude não é necessariamente uma tragédia.

Lá não é aqui. Lá é sempre uma tragédia que não é aqui. Uma tragédia televisionada. Lá é uma tragédia natural porque as tragédias sociais não costumam vir nos noticiários. Lá é sempre um Haiti. E não há tempo para essas geografias e histórias exóticas. Louverture, Dessalines, Papa Doc, Baby Doc, Toton Macoute, Aristide. Nomes exóticos que não é preciso conhecer porque essa voz do senso comum só iria comprovar, apesar de tudo, uma das suas verdades essenciais: "eles não se sabem governar".

Afinal, lá mora um pecado original que é o sonho de liberdade dos escravos. E eles não se podem saber governar. E essa história que não é preciso conhecer para ter certezas mostra que ainda se paga hoje pelo pecado original dessa revolta de escravos, a primeira independência da América Latina. Não porque, como diria um tele-evangelista, essa terra tenha feito um pacto com o demo para se libertar dos franceses. Mas porque a independência foi primeiro punida por uma dívida à francesa e por um embargo à americana e depois uma dívida à americana para pagar a dívida à francesa que balizaram a miséria deste país.

O mau-olhado americano não deixou desde então de assolar a pátria do vodu: uma ocupação durante quase vinte anos, vários ditadores patrocinados (e mais uma dívida à americana para patrocionar os ditadores à americana), vários golpes de estado patrocinados, bloqueios e dumping económico (o apoiado arroz americano destruiu a produção própria depois do FMI obrigar o Haiti a abrir fronteiras e o país passou de exportador de açúcar a importador). Mas são eles que...

O choque já está quase bem encaixado. Nada mais há a fazer. O mesmo senso comum teima num sussurro quase desinteressado: "Ajudamos tanto os de lá. E esquecemos sempre os de cá." A lição de moral daquela voz do senso comum estava já a ruminar há algum tempo na sua cabeça. Mas não podia sair enquanto a coisa não arrefecesse o suficiente. Não somos desumanos. "Os de lá levam tudo. E os de cá? Esquecemos os nossos, é o que é." Misérias da política: eles devem, nós ajudamos, não nos agradecem, os ingratos, esquecemos os "nossos" e eles ficam com tudo só para alguns. Porque eles não se sabem governar.

Não há tempo, nem interesse, nem memória, nem paciência para a história exótica dos lucros do colonialismo dos de cá, da dívida inventada pelos de cá e dos ditadores a soldo dos de cá. E pode mesmo olhar-se para as indústrias da ajuda humanitária dos de cá que só se vê que lá há muito quem se aproveite.

O choque já quase não rende share. A jornalista insiste mais uma vez antes de saber que se atingiu o ponto de saturação e passar para outros choques. Não resiste a sentenciar uma segunda lição de moral: "face a uma tragédia como esta somos todos iguais, não há ricos nem pobres". Passou-lhe despercebida a notícia do Washinton Post de 17 de Janeiro que informava que o terramoto poupou grande parte das casas (bem construídas) de Petionville, o subúrbio dos ricos, que continua o seu ritmo de vida (quase) habitual, sem pilhagens que lá os seguranças privados estão bem armados. A jornalista está desculpada. Não conhece a geografia exótica dessa capital. O mesmo jornal denunciava ainda que as buscas foram selectivas: primeiro o quartel geral da ONU e os hotéis com clientela internacional etc.. Face à tragédia não somos todos iguais. Os de cá primeiro. Nisso, pelo menos, a jornalista deveria ter reparado. Mas lá não é aqui.

Sobre o/a autor(a)

Professor.
(...)