Foi assim com a questão do museu dos Descobrimentos – pela carga colonialista que lhe subjaz – e é assim com o eventual Museu de Salazar e do Estado Novo. Ao contrário dos sinais próprios dos tempos que correm, a questão não pode ser vista binariamente sob a batuta das paixões.
Antes do museu propriamente dito, importa olhar o momento. Vivemos um período de nostalgias que vão muito além do estético, posicionadas no âmago identitário e ideológico das sociedades ocidentais. O rescaldo da globalização e das crises foi a produção de uma massa social hoje metaforicamente designada por “descamisada”. São pessoas de baixa renda e reduzida escolaridade e/ou situadas em faixas etárias onde o choque geracional é evidente. A estes “descamisados” juntam-se os segmentos mais conservadores da sociedade, pessoas cujas socializações estão ligadas a um conjunto de valores que entram em confronto com a mudança social própria das sociedades urbanas atuais, verdadeiras encruzilhadas de identidades. Gera-se, então, um caldo social onde opera a nostalgia, um sentimento de ansiedade no qual se adoça o passado tornando-o idílico e referencial. Ora, em tempos de “combate cultural”, tema a que pretendo voltar oportunamente, o apelo ao passado adquire uma dimensão política profunda, com o revivalismo dos fascismos e do mundo bipolar da Guerra Fria.1
Posto isto, é possível conceber um Museu de Salazar e do Estado Novo sem levar em consideração os fatores nostálgicos e de circunstâncias temporais? Talvez seja. Mas para tal seria necessário desinscrever geograficamente o mesmo. Localizar o museu em Santa Comba Dão significaria confundir património museológico com património religioso. Por outras palavras, um Museu de Salazar e do Estado Novo em Santa Comba Dão seria simbolicamente confundido com um santuário: o lugar onde ele estudou, a sua secretária, os seus pertences, onde nasceu. Tudo somado configura um espaço de memória e louvação, não se distinguindo de variados santuários de aparições. Estamos a falar de um espaço de culto ao querido líder da Pátria e não de um museu, um espaço oportuno para recuperar a tríade: Deus, Pátria e Família. A se concretizar, rapidamente veremos a constituição de um espaço de romarias, com venda de souvenirs dos mais variados apelos nostálgicos da ditadura.
Mas, por princípio, um Museu de Salazar e do Estado Novo é mau? Pelo contrário. Em rigor, afigura-se uma excelente oportunidade de arrumar os fantasmas do passado, servindo de escudo para revivalismos e branqueamentos da História. Isto se a curadoria apresentar o rigor científico e histórico que se exige, contando com espaços para o relato de quem foi perseguido e torturado pela PIDE; para explicitar o machismo orgânico que secundarizava as mulheres e as subjogava à vontade do pai e do marido, segundo um entendimento religioso particular do cristianismo; para relatar a repressão aos sindicatos e todo o tipo de corporativismo; para expor a construção de uma memória social e uma tradição cultural inventada que fermentou o ideal “pobres mas honrados” e dos “brandos costumes”; para encarar, sem rodeios, o racismo biológico e cultural a propósito das colónias, espaços que foram “civilizados” pela bondade cristã; para informar sobre o analfabetismo, as baixas condições de higiene e a reduzida mobilidade social; para desvelar o tratamento de gays e lésbicas como doentes; enfim, que existam espaços devidamente concebidos para encarar a realidade do Portugal de então e o pensamento de Salazar, o seu quadro ideológico, o seu programa político para o país, a construção de uma narrativa mitificada em torno do líder simples, honesto, casto e virtuoso. Um país de paternalismo, machismo, medos, beatificações e elogio do ruralismo.
Notas:
1 A coletânea de textos editada por Olivia Angé e David Berliner, sob o título Anthropology and Nostalgia, oferece um conjunto de estudos-de-caso interessante sobre o assunto.
