Mur(r)os

porCarlos Carujo

07 de janeiro 2010 - 0:00
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Os muros desta era já não se desculpam com a ideologia. São descaradamente económicos quando separam o Ocidente dos países vizinhos mais pobres. Estes muros moram na Itália de Berlusconi onde se criminaliza e se persegue abertamente a imigração, na França de Sarkozy onde o Presidente afincadamente promove o debate sobre o que é "ser francês" dando asas à xenofobia latente, no aparato policial e em todos os centros de detenção de imigrantes europeus, na fronteira sul do EUA, outrora país de todas as imigrações. E etc. O Ocidente é a morada de uma riqueza murada.



Estes muros moram cada vez em mais lados e em cada vez mais cabeças. Nestas cabeças, os muros seriam a solução inevitável para nos proteger dos/as outros/as que trariam a nossa ruína. Nós poderíamos atravessá-los para ir turistando outros cantos do mundo. Para os/as do outro lado, estes muros deveriam ter arestas nas quais, se necessário, se despedaçariam vidas. Tem de ser. Que a vida não é fácil.



Claro que estes muros são porosos. A qualquer nível, os muros parecem ter sempre algo de poroso. Na impossibilidade de trancar totalmente um espaço, os muros deixam passar. Deixam passar justificando a necessidade de mais muros e cavando distâncias. Deixam passar alimentando os interesses clandestinos que fazem daqueles/as que passam clandestinos/as. Deixam passar porque estes/as clandestinos/as são necessários/as a quem quer fabricar trabalhadores/as ilegais baratos/as e em concorrência com os/as outros/as, alimentando um muro de ódio que impede que se veja quem guarda para si a riqueza colectiva.



E se o nosso espírito for suficiente pragmático, podemos enredar-nos no debate armadilhado sobre a largura da malha e/ou a humanização destes poros. Tem de ser. Que a vida não é fácil. Afinal o realismo político não aconselharia a demolir o muro, a abrir portas para onde não há recursos suficientes para aqueles/as que acorreriam, a trazer ao engano milhões de seres humanos, a provocar catástrofes de ambos os lados do muro. Só que a solução não está entre a espada da força bruta e a parede dos/as supostos/as invasores/as. A solução não tem de ser entre a utopia regressiva dos impenetráveis muros perfeitos de nações monotonamente perfeitas cantando hinos gloriosos aos antepassados impolutos, ou o muro de rosto humano aberto a alguns/algumas que caibam no espaço da nossa fartura desigualmente distribuída e condenando gentilmente à miséria que fique de fora, ou a invasão geral dos bárbaros que acabarão com a civilização tal e qual a conhecemos. A solução não se encontra no interior da lógica amuralhada em que nos encerraram.



Sabemos que enquanto a fome, a miséria, a desigualdade e os impérios de desperdício co-existirem os muros não serão nunca suficientes para travar o instinto de sobrevivência e o desejo. Não haverá paz para os/as ricos/as sem justiça para os/as pobres diz um velho e sábio ditado. Só a solidariedade que desmascara supostas dívidas eternas de países depauperados à custa da riqueza ocidental. Só a luta contra os novos e velhos colonialismos. Só o combate às elites de todos os lados dos muros a quem beneficia a pobreza. Só a dignidade para todos/as enquanto programa político fundamental. Só o murro dos dois lados na dureza do muro.



Éramos uma vez nós, ontologicamente sem papéis como qualquer ser humano. Era uma vez uma recusa para uma era sem muros. 

Carlos Carujo
Sobre o/a autor(a)

Carlos Carujo

Professor.
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