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Mur(r)os

Os muros desta era já não se desculpam com a ideologia. São descaradamente económicos quando separam o Ocidente dos países vizinhos mais pobres. Estes muros moram na Itália de Berlusconi onde se criminaliza e se persegue abertamente a imigração, na França de Sarkozy onde o Presidente afincadamente promove o debate sobre o que é "ser francês" dando asas à xenofobia latente, no aparato policial e em todos os centros de detenção de imigrantes europeus, na fronteira sul do EUA, outrora país de todas as imigrações. E etc. O Ocidente é a morada de uma riqueza murada.

Estes muros moram cada vez em mais lados e em cada vez mais cabeças. Nestas cabeças, os muros seriam a solução inevitável para nos proteger dos/as outros/as que trariam a nossa ruína. Nós poderíamos atravessá-los para ir turistando outros cantos do mundo. Para os/as do outro lado, estes muros deveriam ter arestas nas quais, se necessário, se despedaçariam vidas. Tem de ser. Que a vida não é fácil.

Claro que estes muros são porosos. A qualquer nível, os muros parecem ter sempre algo de poroso. Na impossibilidade de trancar totalmente um espaço, os muros deixam passar. Deixam passar justificando a necessidade de mais muros e cavando distâncias. Deixam passar alimentando os interesses clandestinos que fazem daqueles/as que passam clandestinos/as. Deixam passar porque estes/as clandestinos/as são necessários/as a quem quer fabricar trabalhadores/as ilegais baratos/as e em concorrência com os/as outros/as, alimentando um muro de ódio que impede que se veja quem guarda para si a riqueza colectiva.

E se o nosso espírito for suficiente pragmático, podemos enredar-nos no debate armadilhado sobre a largura da malha e/ou a humanização destes poros. Tem de ser. Que a vida não é fácil. Afinal o realismo político não aconselharia a demolir o muro, a abrir portas para onde não há recursos suficientes para aqueles/as que acorreriam, a trazer ao engano milhões de seres humanos, a provocar catástrofes de ambos os lados do muro. Só que a solução não está entre a espada da força bruta e a parede dos/as supostos/as invasores/as. A solução não tem de ser entre a utopia regressiva dos impenetráveis muros perfeitos de nações monotonamente perfeitas cantando hinos gloriosos aos antepassados impolutos, ou o muro de rosto humano aberto a alguns/algumas que caibam no espaço da nossa fartura desigualmente distribuída e condenando gentilmente à miséria que fique de fora, ou a invasão geral dos bárbaros que acabarão com a civilização tal e qual a conhecemos. A solução não se encontra no interior da lógica amuralhada em que nos encerraram.

Sabemos que enquanto a fome, a miséria, a desigualdade e os impérios de desperdício co-existirem os muros não serão nunca suficientes para travar o instinto de sobrevivência e o desejo. Não haverá paz para os/as ricos/as sem justiça para os/as pobres diz um velho e sábio ditado. Só a solidariedade que desmascara supostas dívidas eternas de países depauperados à custa da riqueza ocidental. Só a luta contra os novos e velhos colonialismos. Só o combate às elites de todos os lados dos muros a quem beneficia a pobreza. Só a dignidade para todos/as enquanto programa político fundamental. Só o murro dos dois lados na dureza do muro.

Éramos uma vez nós, ontologicamente sem papéis como qualquer ser humano. Era uma vez uma recusa para uma era sem muros. 

Sobre o/a autor(a)

Professor.
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