As mulheres escrevem mal

porAna Carolina Gomes

03 de fevereiro 2025 - 11:33
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As mulheres que escrevem poemas no verso das listas das compras. Essas não estão na lista de espera para o panteão, nas páginas dos manuais escolares, nos cartazes de festivais. Estão na vida, na resistência, de uma voz menor que teima em se inscrever e ser escrita por quem resiste à força maior e lê mulheres.

As mulheres escrevem mal, ou então não escrevem. E o que escrevem não é literatura, fica-se quase sempre por listas de compras e horóscopos. Toda a gente sabe.

Toda a gente, ou pelo menos quem percebe mesmo a sério destas coisas.

Tenho visto algumas pessoas espantadas com o cartaz do 1.º Festival Literário de Penacova, onde constam oito fotografias, com oito nomes, de oito homens que escrevem. E é isso, são só oito homens, belíssimos escritores, só não são os mais belos porque esses estão todos na (i)mortalidade.

Toda a gente sabe: quem melhor escreve(u) é homem e está morto.

O Presidente da República sabe isto muito bem. No dia da viagem de Eça de Queirós para o panteão nacional, Marcelo Rebelo de Sousa mencionou no seu discurso a grandiosidade de outros nomes da literatura portuguesa, quantos, não tendo honras de panteão, até poderiam ter, “os Trovadores, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, Garrett, Camilo, Eça, Antero, Cesário, Pessanha, Pessoa…”.

No fundo, esta enumeração de Marcelo sintetiza a história da literatura portuguesa que, como toda a gente sabe, terminou com Pessoa. Depois de Pessoa nada mais há, de digno valor, a escrever.

Mas isto mais não é do que um resumo, um resumo mesmo, daqueles da capa amarela e preta cujo título mais conhecido é “Os Maias”. Um resumo dos autores mais citados nos manuais escolares, de onde, mesmo as mais populares mulheres escritoras, como a Sophia de Mello Breyner e a Florbela Espanca, vão desaparecendo com o avançar nos anos letivos.

Tratamos as mulheres como escritoras menores.

As mulheres que nunca aprenderam a escrever, apenas a lavar a louça e os farrapos. As mulheres que mesmo quando foram para a escola só fizeram a quarta classe. As mulheres que escreveram sem a validação da publicação, porque escrever não era para elas. As mulheres que escrevem de forma diferente, não pior, porque experienciam a vida como mulheres. As mulheres que não definiram que o masculino das palavras falaria pelo todo. As mulheres que não escrevem porque não têm tempo entre jornadas acumuladas de trabalho formal e trabalho invisível. As mulheres que escrevem as listas das compras. As mulheres que escrevem poemas no verso das listas das compras. As mulheres que experimentam e desafiam o cânone, que escrevem orgulhosamente mal.

Essas, elas, não estão na lista de espera para o panteão, nas páginas dos manuais escolares, nos cartazes de festivais.

Estão na vida, na resistência, de uma voz menor que teima em se inscrever e ser escrita por quem resiste à força maior e lê mulheres.

O autor está morto, e por estar morto Autor se torna, de textos que podiam ser todos escritos por um grande e anónimo escritor, ao nascerem de perfis quase-avatares do mesmo arquétipo. Nesse caso pouco importa quem escreve.

No caso das mulheres, importa muito, ainda e enquanto o Festival Literário de Penacova lançar sem pudor um cartaz com oito fotografias, com oito nomes, de oito homens que escrevem.

No caso das mulheres importa muito quem escreve, enquanto não for evidente que até na lista das compras há poesia.

Ana Carolina Gomes
Sobre o/a autor(a)

Ana Carolina Gomes

Ativista na Plataforma Já Marchavas, pertence à equipa editorial do Interior do Avesso. Membro da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda, da comissão distrital e da concelhia de Viseu. Licenciada em Antropologia.
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