A morte está tão barata

porFrancisco Louçã

04 de novembro 2023 - 13:56
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Netanyahu sente-se hoje o deus da guerra, dispensando qualquer tentativa de embelezar a sua vingança mortal com um discurso de comiseração pelas vítimas.

A agressividade do Governo de Netanyahu, pela voz dos seus diplomatas e ao mesmo tempo que continua a terraplanagem bombista do Norte de Gaza, é muito esclarecedora de como entende que encurralou o mundo. A parte verbal dessa intensidade, que será a menos ofensiva, manifestou-se contra Guterres, exigindo a demissão do secretário-geral da ONU. O Governo israelita sabe que tal nunca ocorreu nem ocorrerá e, no entanto, sente-se confortado nesta cavalgada contra a ONU; já o mesmo embaixador tinha insultado Guterres por, ao querer abrir os portões daquela prisão para levar medicamentos e água, estar a “alimentar terroristas”. O tom desembestado seria de comício, mas agora subiu uns decibéis e passou a clamar pela demissão pelo facto de ter sido recordado que Israel nunca cumpriu as resoluções da ONU. Ao lembrar estes factos, o secretário-geral da ONU limitou-se à sua obrigação, aplicar a única forma reconhecida de direito internacional nestes casos. No entanto, o embaixador recebeu instruções para provocar uma escalada de incidente diplomático que nenhum outro país se atreveria a fazer. Netanyahu sente-se hoje o deus da guerra, capaz de transformar o apartheid numa zona de terra queimada, dispensando qualquer tentativa de embelezar a sua vingança mortal com um discurso de comiseração pelas vítimas. Matar, é o que repete.

O que é preciso é matar, diz Netanyahu, nisso igual ao Hamas, só que dispondo de um terrorismo de Estado e do silêncio mundial — exceto de Guterres, pelos vistos

Assim, estamos a viver um tempo de alucinação em que um homem foge da justiça do seu país, primeiro através de um golpe judicial e depois pela retaliação por não ter impedido um ataque para o qual foi alertado pelos seus aliados mais próximos, criando um apocalipse genocida à sua volta. Sobre isso já aqui escrevi, mas quero hoje acrescentar uma nova dimensão que, no fragor das bombas, não deve ser esquecida: as próprias bombas, a produção industrial do armamento, o seu negócio e o seu poder.

Montes de dinheiro militar

Faça-me o favor de olhar para o primeiro gráfico. Ele regista os valores absolutos dos gastos militares das principais potências. Primeira constatação, sem surpresa: os EUA continuam a ser, de muito longe, o principal investidor militar, embora o seu orçamento tenha sido reduzido com Trump. A segunda é mais inesperada: a Arábia Saudita e a Índia são comparáveis em gastos militares à Rússia, apesar de este país ter o segundo exército do mundo, mesmo que o seu desempenho na invasão imperial da Ucrânia dececione os que acreditavam na sua eficácia. E a terceira volta a ser evidente: a China é o país cujo gasto militar mais cresceu em proporção (75% em 10 anos), com o projeto anunciado de ser a maior potência mundial em 2049. Esses são detalhes que contam e a floresta não engana, em 2022 o nível real de despesa militar ultrapassou dois biliões de dólares e, desde a guerra da Ucrânia e antes da do Médio Oriente, já estava previsto que aumentasse 200 mil milhões a cada novo ano.

No contexto presente, e dada a escassez de munições na Ucrânia, esse movimento vai ser acelerado. Dir-se-á que a marinha chinesa já é maior do que a dos EUA ou que os russos têm mísseis hipersónicos para os quais os norte-americanos ainda não têm equivalente, o que é certo, mesmo que mantenham uma forte supremacia no conjunto da estrutura militar. Portanto, mais gastos, um ótimo negócio. Ora veja o segundo gráfico, que compara a evolução do principal indicador da Bolsa norte-americana com o das empresas de aeroespacial e armas. Há uma diferença: mesmo que a economia vá mal, o negócio da guerra vai bem e só pode aumentar. A Alemanha tornou-se uma grande compradora e produtora, a Polónia também, a NATO exige uma espiral de militarização — e vai ser cumprida.

O dividendo da paz

Ora, a guerra tem um impacto económico imediato, além da mortandade que é a sua razão. No imediato, aumenta o investimento público, reconverte indústrias e é mesmo a forma mais rápida de provocar um salto na procura agregada, criando uma forma específica de inovação tecnológica (em 1944, os EUA gastavam 53% do seu PIB na guerra). Depois, tem um preço para as economias, pois limita o investimento produtivo, distorce a organização industrial, baixa a produtividade média, gera inflação nos outros sectores da economia e favorece as empresas com maior poder. Não será portanto por acaso que, do escândalo dos submarinos aos do atual Ministério da Defesa, este sector seja uma das sedes da corrupção, e Portugal é só um exemplo. Num estudo de há alguns meses, o “The Economist”, que publicou os gráficos aqui reproduzidos, chamou ao benefício da contenção das despesas militares o “dividendo da paz”, calculando que o que se ganhou com a reorientação desses gastos desde o fim da Guerra Fria é o equivalente ao orçamento mundial para a educação. E o que é que isso importa? O que é preciso é matar, diz Netanyahu, nisso igual ao Hamas, só que dispondo de um terrorismo de Estado e do silêncio mundial — exceto de Guterres, pelos vistos.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 27 de outubro de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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