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“Mortal Kombat”

Não tem sido fácil tornar claro o desenquadramento que existe entre o que representa a geringonça em termos de recuperação de pensões e salários e a política troikista do ministério da Saúde.

Em parte, porque as organizações de profissionais têm tido uma grande dificuldade de mobilização, mas também porque já nos habituamos todas e todos às “grandes desgraças do inverno” e outras que tais, como se inevitáveis fossem! Por isso decidi recorrer à imagética do ridículo para me ajudar a passar a mensagem.

Combate pelo título “quem é o ministro mais à direita?”

Na arena: Paulo Macedo contra Adalberto Campos Fernandes.

Round 1: É sabido que em 2012 Paulo Macedo tentou lançar um grande concurso nacional para contratar “médicos à hora” para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), naquela que teria sido uma etapa chave na precarização total da profissão médica e da qualidade do SNS. A ambição era muita mas o projeto falhou: os médicos organizaram uma enorme greve nacional e saíram para a rua aos milhares, numa manifestação nunca antes vista. Paulo Macedo não só recuou, como lançou, em negociação com os sindicatos, concursos nacionais para contratação de novos médicos (congelados há muitos anos) que permitiram a entrada de centenas no SNS. Já em 2017 ficámos a saber que a Administração Regional de Saúde (ARS) da região de Lisboa vai lançar um concurso para contratação de médicos indiferenciados na forma de prestação de serviços, para colmatar as necessidades de Médicos de Família. Assumindo a possibilidade da contratação direta, a verdade é que a ARS deixa a porta aberta para algumas unidades poderem recorrer a empresas de trabalho temporário. Adalberto conseguirá, a breve prazo, fazer o que Macedo não fez, indo inclusive mais longe, ao colocar médicos sem especialidade a preencher faltas de especialistas.

Final do 1º round: Adalberto 1 – Macedo 0

Round 2: Arrastam-se há já muitos meses os concursos para colocação de novos médicos especialistas no SNS. Estamos a falar de médicos jovens que concluíram a sua extensa formação de 12, 13 ou 14 anos em Universidades públicas e depois no SNS e que, agora que estão prontos para retribuir tanto investimento, se encontram em “suspenso”, à espera de colocação, a exercer funções de especialista e a ganhar como internos. Com esta trapalhada dos concursos, Adalberto está a conseguir ultrapassar Macedo na sua grande conquista: expulsar jovens médicos especialistas para o privado e para o estrangeiro.

Final do round 2: Adalberto 2 – Macedo 0

Round 3 (o decisivo): O Governo aprovou recentemente o novo regime do internato médico. As novas alterações introduzidas tornam a especialização dos médicos uma “exceção” em vez da regra. Aqui temos de voltar um pouco na história. A necessidade de um médico se especializar para ingressar na carreira médica foi uma das maiores conquistas do SNS – garantiu formação diferenciada, estabilizou a carreira em torno do SNS e é um dos principais fatores de qualidade na prestação de cuidados (muito semelhante à carreira de enfermagem). Um médico sem especialização é um médico indiferenciado, sem acesso a formação de qualidade, não integrado num serviço ou numa equipa que empobrece o nível e a diferenciação dos cuidados no SNS. É verdade que foi com Macedo que pela primeira vez umas poucas centenas de jovens licenciados em Medicina ficaram sem acesso à especialização. Mas é com Adalberto que esse número tem crescido, estimando-se atingir alguns milhares nos próximos 2 anos. Mas não satisfeito com a vantagem neste round, Adalberto foi mais longe e colocou em despacho do Governo (e, portanto, em regra para o futuro), aquilo que Macedo fez timidamente.

Final do combate: Adalberto 3 – Macedo 0

O título: “quem é o ministro mais à direita” vai para Adalberto Campos Fernandes, após uma vitória esmagadora, com um fantástico “hat-trick”, sobre Paulo Macedo!

E agora que brincámos às casinhas, conseguem perceber a gravidade do que se está a passar?

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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