Montenegro, o sem cortinas

porCarlos Carujo

12 de março 2025 - 21:23
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O primeiro-ministro queixou-se de estar a viver sem cortinas nos sombrios aposentos do Palácio de São Bento. Soa insultuoso a quem sobrevive dificilmente por causa dos problemas profundos de acesso à habitação. Mas não deixemos de ser solidários e mandemo-lo de volta para o conforto da sua casa de luxo.

Luís vive agora um pouco mais sombrio. No quarto para onde foi empurrado pela força das circunstâncias, não há sequer cortinas, lamenta.

Mais injusto isto parece depois dele próprio ter passado tanto tempo a fabricar cortinas. E das de fumo que implicam um saber tão especializado.

Num momento político decisivo para o país, o primeiro-ministro escolheu soltar, no final de uma entrevista imediatamente antes da queda anunciada do governo, esta frase sobre o facto de se ter mudado para a residência oficial: “Não tem cortinas, tenho que estar um pouco mais sombrio”.

No meio de tanta coisa mais importante a acontecer, um pormenor destes só terá importância se formos picuinhas. Assumo o desafio já que não deixa de ser revelador a vários níveis, começando no auto-centramento.

O lamento de Montenegro não comove. Um primeiro-ministro "obrigado" a ficar num hotel de luxo onde pagava mais do que o seu salário na função porque estava a fazer obras nos apartamentos de luxo que comprou porque as tais "circunstâncias" o levaram a sair da sua casa de luxo. Tudo porque passou a ter "câmaras à porta" do hotel por causa de uma investigação sobre uma sua empresa que fazia serviços ainda não cabalmente esclarecidos a empresas, as que se conhecem ao momento, pertencentes a amigos de luxo ou pelo menos a contactos de luxo a que teve acesso pela sua carreira política.

Que tal drama hoteleiro tenha escapado tanto tempo aos grandes meios de comunicação social, habitualmente tão versados nas tricas das elites, é espantoso. Mas muito mais o é o desconforto por ele enunciado e que estará a enfrentar certamente de forma estóica. Sinal de que quando se baixa a guarda de um discurso político superficial emerge um absoluto deslocamento face à vida e às preocupações reais do povo. E o enunciado soa insultuoso a quem sobrevive dificilmente por causa dos problemas profundos de acesso à habitação que vivemos e que têm sido agravados pelo autor deste lamento.

Para além do descortinado chefe de governo da direita que tem vivido à sombra dos patrões, há muitos mais Luíses que têm de entrar nesta história. Aqueles que vivem em circunstâncias verdadeiramente mais sombrias. E não precisamos de fazer ficção ou grande esforço de imaginação para contar a sua história. Somos nós.

Ainda assim, não deixemos de ser solidários com Montenegro. Cabe-nos agora mandar o primeiro-ministro de volta para o conforto da(s) sua(s) casa(s) de luxo. Mas tenhamos consciência que isso será só um primeiro passo numa luta fundamental e muito difícil pelo direito mínimo à habitação.

Carlos Carujo
Sobre o/a autor(a)

Carlos Carujo

Professor.
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