Nos anos 40, um frango chamado “Mike” ficou famoso por ter sobrevivido à sua decapitação. Durante mais de um ano, o bicho andou em desnorte, sem cabeça.
Trump foi eleito e faz o que prometeu: o Partido Republicano rompeu as velhas alianças, lançou a NATO em novo coma e trata de dividir o saque ucraniano com Putin. Os oligarcas abancam em Washington e Moscovo e a liderança europeia treme, desnorteada como um frango sem cabeça.
Alguns correm para trás, rumo ao atlantismo perdido. Imploram ao imperador para que se reponha no mundo onde sempre esteve. Outros procuram um exército europeu, o guarda-chuva nuclear francês, o rearmamento. Querem marchar para a guerra, mas um frango sem cabeça sabe lá por onde vai.
Oitocentos mil milhões de euros para rearmar a Europa? Mas, “Mike”, onde está a avaliação da capacidade militar já existente? Para onde foram os 326 mil milhões de euros gastos em 2024 (mais 30% que em 2021)? Para a indústria norte-americana? A franco-alemã ? É sobre defesa, não é? Ou sobre a resposta à depressão das economias francesa e alemã devido ao fracasso da austeridade permanente da UE?
E, já agora, “Mike”, de quem nos defendemos? Das bombas russas sobre o Palácio da Pena? De um desvio dos marines até Leixões, no caminho para a anexação da Gronelândia? Da China?
Se tivesse cabeça, a Europa olhava ao espelho. No ano passado, uma rede de desinformação russa colocou na internet milhões de artigos para condicionar os algoritmos da Meta, da Google, da Microsoft e da OpenAI. Em termos simples: estão a ensinar ao ChatGPT (e outros) as respostas que nos dará. As redes sociais de Musk e Zuckerberg estão a promover a extrema-direita na Europa, a que está aliada com Putin e Trump, a que teve 20% na Alemanha e disputará as presidenciais em França. Para onde corres, “Mike”? Para comprar bombas? Quem irá comandar esse exército europeu e controlar o botão vermelho nuclear em Paris? Le Pen? Weidel? Ou será Putin?
Se ainda tivesse cabeça, “Mike” saberia que a guerra contra a Europa não é da Rússia, nem dos EUA, nem da China. A guerra é dos oligarcas contra a democracia. A guerra é o poder do Musk para desligar os satélites que garantem a comunicação ucraniana e a internet no Brasil. A guerra é o poder de Trump para controlar o sistema internacional de pagamentos. A guerra é o poder da Google, da Meta ou da Amazon de manipularem a nossa informação e a nossa “nuvem”.
A guerra é a política em transformação. Só há uma forma de vencer: combater os oligarcas, os nossos e os outros. Tirar-lhes o poder e estabelecer regras de soberania digital. Proteger a educação e a saúde e retomar aquilo de que nunca deveriam ter-se apropriado.
A Europa dispensou a diplomacia para defender a Ucrânia porque ia “vencer a Rússia”. Ajudou a armar o genocídio na Palestina. Viveu feliz debaixo da asa da NATO e agora desvia fundos da coesão, dos serviços públicos e do clima para investir em armamento. Além de serem um negócio, as bombas gostam de ser mesmo lançadas. Não nos servirão para evitar guerras. Para vencer os oligarcas, é preciso ter cabeça.
Artigo publicado no Expresso a 13 de março de 2025.
