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Mestre de obras

E foi então que, subitamente, Passos Coelho resolveu fazer de conta que é líder da oposição ao Governo de António Costa.

Tendo-se abstido estrategicamente de apresentar propostas sobre qualquer assunto minimamente relevante para o país desde que foi apeado do Governo à luz da Constituição que sempre desdenhou a cada Orçamento do Estado, decidiu estatelar-se com estrondo quando resolveu recorrer à memória iluminada sobre o passado recente das suas obras e respectivos canapés. Pensou poder reescrever o passado.

Assistindo à forma como Passos Coelho criticou a presença de António Costa na inauguração do túnel do Marão (assegurando que no seu tempo nunca esteve em inaugurações "nem de estradas, nem de auto-estradas, nem de pontes, nem de coisa nenhuma"), solta-se uma gargalhada geral na nossa memória colectiva. Ou não nos lembrássemos de o ver a passear num barquinho aquando da inauguração do parque temático "World of Discoveries" em 2014, entre tantas outras cerimónias. Se é estranho que Passos não se lembre, ainda mais estranho é que não perceba agora a importância e normalidade da presença de um primeiro-ministro em cerimónias públicas.

Quem se recordar do semblante do já então líder da oposição na inauguração do Centro Escolar de Lordelo em Fevereiro deste ano, até poderia pensar que Passos tentou primar pela coerência: não inaugura obras enquanto primeiro-ministro e só enquanto deputado que finge continuar a ser primeiro-ministro. O que, sabemos, nem foi bem o caso, tendo em conta que o edifício público já funcionava desde o ano lectivo 2013/14. Passos Coelho revela-se um verdadeiro mestre de obras, tudo fez mas nada pelas próprias mãos, o que não deixa de lhe acrescentar um toque de verdade face à contínua torção vertebral face às posições de Bruxelas que sempre acolheu com o sorriso do bom aluno que se faz à nota. Há quem lhe chame "rating" e diz-se que anda pela linha de água do lixo.

O ex-primeiro-ministro deve odiar literatura infantil e percebe-se bem porquê. É óbvio que perante as críticas que faz a Costa, também não suporta "Bob, o construtor" embora a aversão já venha de longe. Depois de zurzir sem cansaço sobre o "conto de crianças" que a ascensão da Esquerda grega personificava, viu-se aterrorizado por uma "geringonça à portuguesa" que funciona e à qual até já atribui mais coesão do que alguma vez pensou. O que, ainda assim, não lhe atribui a palavra-passe para um ataque de infantilidade através da insinuação de que o actual ministro da Educação se move por "outros interesses" que não o corte das gorduras do Estado em relação aos contratos de associação com os colégios privados. As gorduras, já agora, que Passos só secou liminarmente nos bolsos dos mais desfavorecidos, pensionistas, funcionários públicos ou duma classe média que transformou, conto a conto, numa ficção bem adulta e penhorada.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 11 de maio de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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