Mês de agosto, mês de reflexão

porRafael Pereira

07 de agosto 2024 - 10:08
PARTILHAR

Tornemo-nos mais exigentes na forma como passamos a mensagem de um mundo melhor, com amor e com respeito, e que agosto sirva para pensar em como construir esse mundo.

Entramos em Agosto preparados para um merecido mês de descanso, mas sem nunca trazer destes últimos sete meses uma reflexão profunda do que nos espera nos próximos tempos. Desde janeiro que não têm parado os acontecimentos políticos de grande importância global, desde logo épocas intensas de eleições, mas também grandes debates políticos e o agravar de conflitos internacionais. Tudo isto flutua assim em um clima de crescente ódio, desespero e ressentimento. Vale a pena, portanto, fazer uma curta recapitulação do que tem acontecido pelo mundo.

Primeiramente, umas eleições legislativas que colocaram Portugal em um novo ciclo à direita, com o crescimento abrupto de uma extrema-direita de culto personalista e completamente caricatural. O Partido Social Democrata, o grande vencedor por uma pequena margem, tornou-se herdeiro das “contas certas” do antecessor Partido Socialista, tentando agora a todo o custo manter-se enquanto Governo criando grandes pacotes de medidas - que muitas vezes pouco têm a oferecer, e quando o fazem sustentam-se sempre em fundos oriundos do excedente orçamental. Só se irá perceber ao certo o que pretende o PSD para o país com a apresentação do Orçamento de Estado no final deste ano, não esquecendo também as dúvidas que pairam sobre as condições políticas de o concretizar.

Em segundo lugar, umas eleições europeias que antecipavam um cenário gravíssimo nas urnas. A assustadora ameaça da extrema-direita tornou-se apenas em um ligeiro crescimento das fações da direita política no parlamento europeu, mantendo-se os principais alicerces europeus completamente intactos. Pouco ou nada mudou de verdade na política europeia, inclusivamente mantendo-se eleitas as figuras políticas de destaque - à exceção de António Costa que se tornou agora uma importante figura no sistema europeu. Para além disso, o próximo ciclo legislativo europeu terá muito em que trabalhar, desde matérias relativas à segurança internacional, à integração e regulação da inteligência artificial, passando ainda pela redistribuição e taxação de riqueza e a gravíssima crise de habitação que assola a maioria - senão todos - os estados-membros. As instituições europeias passarão agora por uma prova de fogo, onde o objetivo será apaziguar o descontentamento politizado por alguns quadrantes, promovendo políticas que resolvam efetivamente os problemas a longo prazo da UE.

Também em consequência da instabilidade europeia e das suas instituições, França viu a sua superestrutura política abalada por uma jogada eleitoral. Emmanuel Macron convocou eleições para 30 de Junho depois de ser derrotado nas urnas europeias, onde esperava testar a força da democracia francesa em prol do caos programado dos “neo-fascismos” de Marine Le Pen e Jordan Bardella. Na segunda volta, a 7 de julho, tornou-se claro para todos que a união fez a força e a Nova Frente Popular obteve a vitória. Contra todas as expectativas, a grande união de partidos da esquerda política (incluindo os mais moderados) conquistou a maioria dos votos e mostrou-se como uma alternativa desejável e ambiciosa aos anseios predatórios da extrema-direita que acabou por ficar em terceiro lugar. Resta agora perceber como é que a máquina política francesa e a Assembleia Nacional irão lidar com esta instabilidade artificialmente criada e reforçada a partir destas eleições.

Igualmente no Reino Unido se deram eleições no início do mês de Julho. A mais que esperada derrota histórica do partido conservador, mostrou uma urgência do povo inglês de regresso a uma política com menos tiques reacionários e mais adaptada à democracia progressista do século XXI. O desastre do processo Brexit, medidas como a deportação de imigrantes para o Ruanda ou a adoção de várias políticas discriminatórias e hostis para pessoas LGBTQI+, sem nunca esquecer a brutalidade fiscal de Liz Truss em 2022, foram tudo pregos para um caixão que aguardava ser há muito enterrado. Pouco se conhece do novo primeiro-ministro Keir Starmer e, tendo em conta o rumo ideológico atual do partido trabalhista inglês, serão poucas as mudanças fraturantes nas políticas de governo, mas fica claro que a necessidade de refletir profundamente e renegar (de certo modo) estes 14 anos de liderança conservadora imperou sobre as dúvidas que subsistem sobre o rumo da esquerda britânica.

As eleições norte-americanas são também o grande assunto deste ano. Entre o idadismo, as preocupações genuínas, os media e a despreparação política, o povo norte-americano vê-se forçado a escolher entre o mal e o pior, em um bipartidarismo que não serve nenhuma democracia, principalmente quando aliada sempre aos interesses do capital e do imperialismo. O afastamento de Joe Biden da corrida presidencial trouxe certamente uma lufada de ar fresco no cenário político, podendo Kamala Harris ser a primeira mulher presidente dos Estados-Unidos, mas nem por isso é garantido o mesmo ar fresco para o partido democrata tendo em conta a sua orientação político-programática. Focando as suas campanhas na luta do bem contra mal, da democracia contra o autoritarismo, os candidatos norte-americanos e os Estados Unidos da América na sua generalidade esquecem mais uma vez as discussões de fundo que afastam a região cada vez mais do desenvolvimento e progresso, estando cada vez mais despreparada para o que é exigido do futuro.

Por fim, os intermináveis conflitos internacionais: uma guerra russo-ucraniana que perdura no tempo, e um genocídio na faixa de Gaza. Por um lado, o futuro institucional da Ucrânia é incerto: juntar-se-à ou não à NATO e juntar-se-à ou não à União Europeia? É preciso discutir e refletir qual será então a relação da Europa com a defesa daquela região e de que forma se pode efetivamente apelar a um cessar-fogo fazendo a Rússia parar com esta invasão imperialista. Por outro lado, e relativamente ao cenário horrendo no Médio Oriente, é necessária e urgente uma tomada de posição do panorama internacional sobre esta questão. O povo da Palestina vê-se reduzido a cada dia, com bombardeamentos intermináveis sobre escolas, hospitais e zonas de habitação, Israel leva a cabo uma política de destruição maciça e só descansará quando exterminar o povo que considera desde sempre uma afronta à sua existência. O Tribunal Penal Internacional já considerou Israel como um estado de apartheid, agora é preciso ir mais longe e julgar os seus líderes como genocidas, parando imediatamente esta destruição e garantindo ao povo palestino condições para o seu restablecimento e livre desenvolvimento.

E por todos estes acontecimentos que se acumulam nos últimos meses, merecemos um descanso, merecemos uma reflexão. Uma reflexão social sobre o que significam todas estas mudanças políticas, toda esta instabilidade, todos estes conflitos e toda esta incerteza no futuro. Porém, merecemos principalmente uma reflexão político-partidária. O que significam todos estes avanços e recuos para a esquerda, numa dança hedionda onde nos é vedada a sua condução? Como podemos combater alguns dos percalços deste caminho que é a segunda década do século XXI e começar a guiar a dança perigosa da democracia, adaptando-nos às circunstâncias?

Para dúvidas que são tantas, as respostas são tão poucas, mas talvez seja hora de pensar a esquerda e pensar mais à esquerda, afirmando e reafirmando soluções. Não ter medo de testar hipóteses mesmo sabendo que podem dar errado - apesar de se ter agora precedentes que poderão dar um vislumbre de como atuar com sucesso. Tornemo-nos mais exigentes na forma como passamos a mensagem de um mundo melhor, com amor e com respeito, e que agosto sirva para pensar em como construir esse mundo.

Rafael Pereira
Sobre o/a autor(a)

Rafael Pereira

Estudante de sociologia deslocado para Coimbra e ativista interseccional
Termos relacionados: