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Merkel lava mais branco

A troika, agora de capuz, escondida ao virar da esquina, mas a salivar abundantemente à nossa mesa, não saiu de Portugal. Deu-nos uma aparência de férias em liberdade, prisioneiro em saída precária com pulseira electrónica num "InterRail".

Quase 100 anos depois, continua a fazer sentido a preocupação que Keynes demonstrou pelo empobrecimento dos europeus nos escritos sobre as "As consequências económicas da paz". Em 2014, a paz podre que a saída cautelosa da troika parece comprar em Portugal não é mais do que uma conveniência europeia numa Europa em eleições que cresce ao contrário, sem qualquer preocupação com as feridas abertas que, alarmantes, contrariam a ideia de que a autonomia é uma ideia feliz. É claro que nunca esteve em causa a nossa independência ou o nosso arbítrio final. O que sempre esteve em causa e continua em cima da mesa é a nossa autonomia para decidir. Somos, assim, de um Portugal coagido a aceitar (imagine-se!) um prémio de autodeterminação no fundo do poço, compelido a desejar uma saída limpa que em nada é transparente. Por mais que se esforcem por limpar a saída e porque nada foi claro neste processo, só me assalta a imagem de que conseguiram convencer-nos de que um aluno com boas notas não pode ser, na realidade, um belíssimo cepo.

Fecharam o país na ideia de que somos culpados. Mandaram-nos decorar uma ou duas ideias, três ou quatro princípios básicos. Encomendaram umas quantas figuras de estilo e uns quantos economistas de encomenda. Fizeram-nos sentir o peso das gorduras e dos excessos com que sempre nos aliciaram, espantando-se subitamente com o peso do crédito. Rotularam-nos de indigentes e nós acreditámos. Apontaram-nos um único caminho: não há solução senão a imposta, nada se negoceia e nada se transforma. Pois até aí nos enganaram. Transformaram-nos num país pior, mais desigual e socialmente fracturado, preparadíssimo para continuar em crise aguda apesar do maior respeito dos mercados e das agências de notação norte-americanas que ainda nos vêem como uma perspectiva de negócio. Vamos continuar então a especular como eles: somos culpados por termos acreditado que não há outra saída que não a de pagar e suspirar agradecidos ao algoz que nos mantém vivos? Somos mesmo cepos por agradecer ao raptor os bons tratos e os elogios à nossa fidelidade canina nos momentos em que nos mantiveram suspensos e presos à cadeira? A Alemanha, em 2010, saiu com "outra limpeza" das dívidas da II Guerra Mundial. Decepados pela guerra, mas nada cepos ao negociar.

Dir-se-á que os tempos são outros e têm toda a razão. A razão em razão do medo, da desconfiança e do desmoronar da economia à escala global, que esteve na base do perdão de quase dois terços (62,6%) da dívida externa alemã no pós-guerra, dissipou-se. Mas a recuperação da economia alemã, depois do abismo da II grande guerra, não é só um milagre do trabalho e da perseverança. Com o perdão da dívida dos Acordos de Londres, em 1953, a Alemanha duplicou o seu PIB numa só década à custa de uma troika mais amável pela mão dos EUA, França e Reino Unido. Em menos tempo do que o previsto, o milagre económico alemão permitia pagar toda a dívida não perdoada em menos tempo do que o suposto. Os tempos são outros, sim. Naquela altura, o serviço da dívida com os juros mais baixos do mercado estava "indexado" à capacidade da economia alemã e a amortização anual da dívida e juros limitada a 5% do valor das exportações do país. Uma limpeza. Assim como o término do pagamento da dívida externa alemã decorrente da I Guerra Mundial. Em 2010, 92 anos após o conflito.

A troika, agora de capuz, escondida ao virar da esquina, mas a salivar abundantemente à nossa mesa, não saiu de Portugal. Deu-nos uma aparência de férias em liberdade, prisioneiro em saída precária com pulseira electrónica num "InterRail". A saída limpa de Portugal já há muito decidida pelo eixo alemão-holandês-finlandês é uma plataforma interna de sucesso nos seus países e mais uns votos na eleição de Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão Europeia. E fica, para sempre, como uma atávica coroa de glória a quem neste país sempre defendeu que a dívida não é renegociável, nem sequer os juros da mesma, solução única. Porque, ao contrário da Alemanha do pós-guerra, nunca se batalhou por um perdão da dívida em Portugal. Alguns só ousaram pensar em renegociar. Nada me move contra a chanceler Merkel à excepção de que, fora do seu país, continua a dirigir cepos. Não é gente muito difícil de dirigir.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 6 de maio de 2014

 

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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