Há poucos meses, a ministra que tutela as questões da igualdade, Mariana Vieira da Silva, discursando num dia consagrado ao combate ao racismo, constatava que “temos assistido a uma escalada de discriminação, discurso de ódio e incitamento ao ódio e violência que leva ao agravamento da segregação, insegurança e exclusão social destes grupos. De facto, em 2020, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial recebeu 655 queixas de práticas discriminatórias de base racial e étnica, um acréscimo de 50% face ao ano anterior”. Desde 2015, o aumento do número de queixas terá sido de 400%. No entanto, o mesmo Governo mantém-se agora atrapalhadamente silencioso sobre a declaração do seu encarregado de negócios em Doha, Manuel Gomes Samuel, que explicou de forma desempoeirada como a melanina é vantajosa para os trabalhos duros de construção dos equipamentos para o Mundial de Futebol no Catar. Parece que o diplomata não requer conhecimento sobre o assunto, basta-lhe a convicção e a naturalização da conclusão, os não-brancos aguentariam melhor o calor e seriam por isso adequados para a tarefa (do salário mínimo pelos 250 euros, dos seis dias de trabalho por semana, dos dois anos de trabalho obrigatório, dos mortos em acidentes, disso nada constou). O pequeno sururu provocado pela afirmação disparatada levantou a resposta de sempre, o nosso país não é racista — uma frase que não tem qualquer significado, um país não tem o atributo de uma pessoa, não tem um sentimento coletivo uniforme que o defina — ou, na versão mais sofisticada, não existe racismo estrutural, de modo que os dizeres do homem seriam um mero episódio a esquecer.
E por aí ficaríamos se a questão não se levantasse vezes sem conta, suscitando linhas de defesa preocupadas. O líder do PSD, nem falo do do Chega, que até manifestações organizou sob esse lema, veio garantir há pouco que “em Portugal não há racismo estrutural”; o Presidente, também não faz muito tempo, assegurou que as queixas tratam de casos isolados. O problema é que esta resposta é pouco crível. A cumplicidade com os desmandos da FIFA e do Governo do Catar é pesada, tudo pelo espetáculo. E, já agora, em Odemira os imigrantes não vivem em condições diferentes dos do Catar nem o escândalo da revelação as alterou; os roubos salariais são frequentemente serventia da casa (como no Catar). Por isso Carla Santos, colaboradora da Obra Católica das Migrações, dizia recentemente à Rádio Renascença que “todos os dias lida com esta realidade” do racismo estrutural.
O truque dos normalizadores é sugerir que o reconhecimento destas condições estruturais remeteria para uma culpa individualizada, e, logo, cada pessoa seria punível pelas condições económicas e sociais que ao longo de séculos construíram o racismo. Ora, a alusão à regra da expiação individual pela história é uma ameaça sem sentido e constitui, de facto, uma estratégia de desculpabilização e de ‘irremedialização’ das condições da exploração e do discurso racista. No que há culpa individual é na declaração racista do diplomata, mas essa parece que é para esquecer.
Artigo de Francisco Louçã, publicado no jornal “Expresso” a 12 de agosto a 2022
