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Mediatizar para calar

O que se passou no Panteão Nacional é a prova cabal da mercantilização do património, mas esta não se encontra desligada de outros acontecimentos que passam despercebidos, ou aos quais não se levanta oposição mediática.

Temos por garantida, como algo que vai marcando o ritmo do quotidiano, a polémica semanal. Cada acontecimento que acuse um embrião de mediatização é aproveitado, manobrado e manipulado de forma a que seja possível atribuir responsabilidades sem qualquer debate de fundo. Responsabilidade tem sido, por si só, a palavra do ano. O apurar de responsabilidades é meio caminho andado para a resolução de um problema. A responsabilidade política contribui para a transparência, para que tudo fique em pratos limpos. Mas a atribuição da responsabilidade não pode ser um fim em si mesmo, a ela tem de se seguir obrigatoriamente o diagnóstico do problema. Porém, o diagnóstico não interessa ao poder porque o põe em causa, porque questiona as suas ações, as suas decisões, porque ajuda a compor uma imagem da realidade cuja percetividade não interessa ao poder.

O caso Panteão é mais uma fase de um jogo de atribuição de responsabilidades sem consequências, sem discussão posterior, de forma propositada. O que se passou no Panteão? O que agita a opinião pública quanto ao jantar da Websummit no Panteão? O que significa o jantar do Panteão?

Já se sabe que não é o primeiro jantar a acontecer no local, já se sabe que há até um preçário para a utilização do espaço. A discussão mediática centra-se na responsabilidade pelo acontecimento. Quem deixou que o Panteão se convertesse em salão de festa? Quem definiu o preçário? Quem sabia do jantar? Quem podia ter impedido o jantar e não o fez? Podemos responder a todas estas questões. Sabemos até que nas várias respostas encontraríamos os mesmos de sempre - uma responsabilidade em forma de bola de ténis que é atirada de um campo para outro, incessantemente, sem que se perceba quem de facto ganha o ponto - PS ou PSD, ou PSD/CDS quando jogam a pares.

Há pelo menos um consenso quanto ao jantar no Panteão: é insultuoso ou desrespeitoso porque é evidente o simbolismo que tem o monumento no que toca à memória. Cumpre uma função facilmente identificável: a preservação da memória personificada nas figuras históricas que lá se encontram sepultadas. O jantar é tido como desrespeito, não só em relação a essas figuras individualmente, mas também porque se serve de um espaço com uma função específica e o utiliza para algo completamente contrário - o lazer reservado à elite, aos fundadores da Websummit; o festejo de uns poucos no espaço do luto de muitos, por mais que nos identifiquemos ou não com quem lá jaz.

O que se passou no Panteão Nacional é a prova cabal da mercantilização do património, mas esta não se encontra desligada de outros acontecimentos que passam despercebidos, ou aos quais não se levanta oposição mediática. A mercantilização do património, o esvaziamento do seu significado, ou a manipulação do mesmo, para efeitos de lucro é apenas uma parte da mercantilização em geral e da desvirtuação a ela associada. O que tem de diferente o jantar da Websummit, no Panteão, dos despejos das pessoas e famílias dos bairros históricos, para efeitos de negócio imobiliário? O que tem de diferente o jantar no Panteão da utilização dos espaços das Universidades públicas - destinados ao conhecimento e à emancipação - para crescimento das empresas privadas em que o nome da Universidade aparece associado constantemente a um banco, por exemplo? Porque se questiona exacerbadamente a marca Websummit no Panteão, mas se deixa passar o facto de o Pavilhão Atlântico já ter passado a nome de empresa duas vezes, de Meo Arena a Altice Arena? O que temos a dizer, onde está o apurar de responsabilidades quando se fecha uma estação de metro para que os “entrepeneurs” cheguem mais facilmente à Websummit, como no ano passado, deixando centenas ou milhares de utentes sem alternativa?

O problema reside, obviamente, também em quem possibilita estes acontecimentos, em quem assina o despacho, em quem abre a porta ao mercado. Mas são isso mesmo, -acontecimentos -, por isso inscritos em algo maior, numa agenda política de direita, neoliberal, à qual o PS não escapa enquanto partido que mais privatizou. Neste caso, trata-se da utilização de todo e qualquer espaço para o negócio: da cultura, à memória, o mercado está em todo o lado, agora até entre os mortos. Que o debate não cesse após o apuramento de responsabilidades, mas que se problematize seriamente a utilização do espaço público e do serviço público ao serviço dos privados, do mercado. Cabe-nos a nós agarrar a nossa presença mediática e evitar cair na responsabilização inconsequente, não deixar que o assunto morra, cabe-nos a nós radicalizar o discurso e tocar na ferida.

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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