A matrioska de Putin

porMiguel Guedes

20 de março 2022 - 11:49
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No seu último discurso oficial à nação russa, o líder russo revelou uma face diferente daquela que, até agora, havia transparecido. Por mais que o tente negar, a "operação cirúrgica de desnazificação da Ucrânia" é mesmo uma guerra que a Rússia sente que pode perder ou que não conseguirá ganhar.

O primeiro momento de fraqueza de um agressor não se vislumbra sem que se sinta verdadeiramente acossado. Isolado pela comunidade internacional, onde apenas quatro países nas Nações Unidas (Bielorrússia, Coreia do Norte, Eritreia e Síria) se colocaram a seu lado. Castigado por sanções económicas sem precedentes à escala mundial que fazem ruir a já débil prosperidade económica do país. Enganado pelos seus serviços secretos que, dizendo-lhe o que queria ouvir, o convenceram de que a invasão da Ucrânia seria uma operação cirúrgica de dias e que em duas semanas tomaria Kiev, tombando o poder de Volodymyr Zelensky.

Numa primeira manifestação de desespero, Putin inaugurou o ritual de abertura da grande matrioska. Com origem no Japão, a matrioska é um símbolo adoptado pelos russos como sendo tradicionalmente seu. Símbolo de fertilidade, maternidade, amizade e amor, seis ou sete bonecas colocadas umas dentro das outras enunciam as várias camadas de leitura da vida que atravessa gerações. As próximas duas semanas ditarão se Putin fará questão de abrir cada uma das bonecas, em purga e perseguição dos seus, até que chegue à derradeira, a mais pequena de todas elas, porventura a sua miniatura em espelho, sem gerar mais vida, já sem caminho de fuga ou possibilidade de reinvenção.

Quando os ataques internos aos seus conselheiros e à elite oligarca russa começam, percebe-se a enorme incomodidade pela falta de apoio. Documentos oficiais revelam que Vladimir Putin terá sido iludido por sondagens que ele mesmo encomendou, onde os resultados davam conta de que os ucranianos não confiavam no seu governo, nas suas instituições e autoridades, mas cujas conclusões menosprezavam o que a mágoa e a revolta da eclosão de uma guerra artificial fariam pelo sentimento de coesão nacional ucraniana. No seu último discurso oficial à nação russa, há dois dias, o líder russo revelou uma face diferente daquela que, até agora, havia transparecido.

Por mais que o tente negar, a "operação cirúrgica de desnazificação da Ucrânia" é mesmo uma guerra que a Rússia sente que pode perder ou que não conseguirá ganhar sem que com isso se transforme num pária absoluto, insulado e em falência, isolado e incomunicável, afastado internacionalmente da grandeza que Putin não concebe ser distante. Há quem faça contas ao armamento que a Rússia já perdeu, cerca de 50% do seu investimento bélico nesta guerra. Outros asseguram que mais dez dias de resistência ucraniana serão fatais para as aspirações de Putin. Ainda outros admitem que só uma solução negociada permitirá o fim do conflito que aspire a uma paz minimamente duradoura. Em todas as visões, a palavra fim como vislumbre. A Rússia, o maior país do Mundo, desterrado, transformado num gigantesco "gulag" pela visão imperialista de um homem e da sua sede de poder.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 18 de março de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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