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Marisa Matias, uma vida de Matusalém sem um dia de Pilatos

Marisa Matias não foge a uma luta, não foge a um país, nenhum assunto resulta em ombros encolhidos, não há naquela vida de Matusalém um dia de Pilatos.

É possível viver o mundo num dia e é possível não deixar nada para trás. Em tempos líquidos, propensos a mudar com rapidez, as redes sociais mostram o que é volátil, criam a ilusão do acompanhamento, atiram para a praça pública informação que não seria lida em livros, as pessoas passam por tudo a correr no telemóvel e continuam sem tempo para nada. A informação come cérebros e a densidade perde-se no excesso. Anda a dar-se pouco tempo ao tempo e anda a fazer-se muito pouco. Este raio de sol chamado Marisa Matias prova que é possível ser tudo, ter tempo para tudo, chutar para lá a indiferença, reivindicar o mundo, transformá-lo. Enquanto estivermos vivos, tudo o que vive e viveu diz-nos respeito. A Marisa Matias põe as mãos na massa, a vida ali torna-se fermento.

Eu sei que parece difícil confiar em políticos. Aparecem como uma massa uniforme, é assim que a opinião pública os pinta, e que jeito tem dado à direita. A esquerda terá os seus cancros, há muita coisa em comum na espécie humana. A Marisa Matias, contudo, está acima disso, é impossível olhar para ela sem a invasão súbita de uma onda de confiança (intelectual, política, pessoal). Não é apenas o seu percurso imaculado, é a vida que ele tem. Doutorou-se em Sociologia, o que muito diz a quem sabe o que é escrutinar livros, estudar a fundo, ousar pensar, ousar a tese. Começou a trabalhar aos 16 anos, fez limpezas, serviu à mesa, o que muito diz a quem sabe que o mundo não se faz por e com quem teve sempre tudo tão fácil que não imagina o que é a vida.

É difícil em poucas linhas descrever um percurso tão sólido e caleidoscópico. Socióloga, académica, fez a avaliação crítica do Banco Central Europeu, focou-se nas relações com o Médio Oriente, foi uma voz pelos direitos dos refugiados que nunca cedeu à rouquidão, foi um punho de ferro a bater na mesa contra a violência sobre a Palestina ocupada enquanto o resto do mundo parecia assobiar para o lado. A Marisa Matias é um foguete de luz num mundo em que o patoá compete com a farsa para ver quem tem mais lugar ao sol.

Daí que não surpreenda que tenha sido anunciada pelo Bloco de Esquerda como cabeça de lista às próximas eleições europeias. Não apenas pelos dois mandatos de excelência que já cumpriu em Bruxelas, mas também por uma ânsia de concatenar que não vi em mais ninguém, pelo frenesim que lhe molda os passos e as acções, pela capacidade ímpar e apaixonante de estar em todas as frentes. A Marisa Matias é o exemplo mais frenético, mais claro e mais profícuo de que não é sério, não é justo, não é humano virar as costas a nada. Estamos no mundo e pertencemos-lhe, tudo nos diz respeito. Ignorar a barbárie é permiti-la, não querer sujar as mãos é deixar outras mãos atadas. Tudo tem que ver com quem está vivo.

A pegada ecológica da Marisa Matias é do tamanho da sua incomensurável ambição de influir e de disputar o mundo. Vê-la cansa, segui-la cansa, olhá-la inspira. Não foge a uma luta, não foge a um país, nenhum assunto resulta em ombros encolhidos, não há naquela vida de Matusalém um dia de Pilatos. Onde é preciso alguém, ali está ela, e desengane-se quem possa especular sobre um movimento estéril, é em perene movimento concatenador que ela se encontra. Com a Marisa, se trazemos a legalização da eutanásia à baila, também sabemos que podemos falar do Estado Islâmico; se é da desigualdade salarial em Portugal que falamos, também podemos falar da crise do Médio Oriente, da colonização da Palestina; queremos saber como está o tempo em Bruxelas, mas ela já se lançou para as Honduras para acompanhar os processos eleitorais. Por vezes, dá a ideia de que o mundo pode deixar para amanhã o que a Marisa pode fazer hoje.

Imagino que se canse, mas nunca a vi cansada. São 42 anos e em concomitância uma força renovada de alguém por quem o tempo passa sem a deixar mais velha. A meio da campanha presidencial, só fazia pausa para dar aulas de doutoramento. Ou seja, parava de trabalhar para trabalhar, mas com a alegria intensa de quem vê nesse trabalho - porque é político, porque é cívico, porque é útil - o seu lugar no mundo. Fazia perguntas sobre o status quo e respondia-lhes, enquanto nós fazíamos uma pergunta sem encontrar resposta: “Mas esta gaja nunca dorme?”

A Marisa Matias é conteúdo, é força, é resistência, é inteligência, é estudo. É o degrau de cima da política, o anti-cancro. Seguir o seu exemplo e admirá-la, perceber porque é que é tão importante que exista gente assim em tempos líquidos, é também combater o escuro.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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