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A "mama" dos colégios: hipocrisia e farisaísmo

É lamentável que os donos dos estabelecimentos do ensino particular procurem assustar professores e funcionários, alunos e suas famílias, instrumentalizando-os e coagindo-as a servir de “peões” na sua cruzada.

O governo decidiu deixar de financiar a abertura de novas turmas em colégios privados com contrato de associação em locais onde existam escolas públicas nas proximidades e tanto bastou para a direita e os interesses que ela serve, com a cumplicidade de grande parte da comunicação social com eles alinhada, iniciasse uma guerra sem quartel contra aquela decisão governativa.

Afirmo desde já que entendo que os sectores com funções sociais altamente relevantes como a educação, a saúde e a segurança social devem ser públicos e universais, como determina a Constituição da República Portuguesa. Admito que os privados possam aí operar, mas apenas com uma função supletiva, ou seja, nunca poderão substituir a oferta pública. Quem os quiser utilizar, que os pague, de acordo com um princípio que a direita gosta de esgrimir noutras questões (como as portagens nas autoestradas, por exemplo): o do utilizador-pagador. Agora, o que não é moralmente aceitável é o Estado (ou seja, todos/as nós) financiar negócios privados e os luxos das classes ricas da nossa sociedade.

Após o 25 de Abril, o aumento do acesso à educação deparou-se com a escassez de instalações em muitos lugares. Em alguns, o Estado acabou por tomar posse de instalações de antigos colégios, que, entretanto, haviam encerrado; noutros, resolveu contratualizar com os estabelecimentos de ensino particular aí existentes. Acontece, porém, que a rede de escolas públicas se foi expandindo, pelo que grande parte desses contratos deixaram de fazer sentido.

Porém, os sucessivos governos não tiveram a coragem política de pôr cobro a este sorvedouro de dinheiros públicos. A explicação está nos principais proprietários dos estabelecimentos de ensino particular: o primeiro é a Igreja Católica, cujo poder, influência e capacidade de mobilização continuam a ser imensos; os outros são alguns grupos privados ligados a interesses obscuros e negócios pouco claros (veja-se a excelente reportagem da jornalista da TVI, Ana Leal, sobre o grupo GPS de António Calvete), cujos tentáculos se estenderam a uma parte significativa do “centrão” político.

O mais espantoso disto tudo é ver a hipocrisia da nossa direita e o farisaísmo de uma parte da hierarquia da Igreja Católica e de organizações a ela associadas, como a sinistra Opus Dei.

Os primeiros, sempre tão lestos a defenderem o equilíbrio orçamental à custa de cortes na despesa (quem não se lembra do seu ataque às chamadas “gorduras do Estado”?), justificação para cortaram salários e pensões e reduzirem benefícios sociais aos trabalhadores e aos mais pobres, mandam “às malvas” as finanças públicas quando se trata de defender as rendas dos colégios particulares. E, pior ainda, falam de “expectativas goradas”, algo de que se esqueceram quando dos cortes aos mais desfavorecidos. Pelo contrário, nessa altura criticavam os “direitos adquiridos” pelas classes profissionais e pelos mais pobres.

Os segundos, que agora aparecem muito preocupados com a estabilidade das famílias e das crianças, calaram-se quando foram cortados abonos de família, subsídios de desemprego, complemento solidário de idosos, quando encerraram escolas do 1º Ciclo ou quando muitos/as jovens tiveram de deixar de estudar por não terem dinheiro para as propinas. Como dizia a minha falecida mãe, há quem só saiba rezar o Pai Nosso até ao “venha a nós”!

Por outro lado, ambos apresentam o mais falacioso dos argumentos: o da “liberdade de escolha das famílias”. Na verdade, essa mirífica liberdade seria apenas para as escolas privadas e para os estratos familiares mais favorecidos. Ou alguém pensa que um colégio privado aceita(ria) alunos/as provenientes de minorias étnicas ou de bairros sociais? Ou com necessidades educativas especiais? Ou com comportamentos problemáticos? Claro que as escolas públicas ficariam apenas para essa população escolar mais desfavorecida e/ou com problemas sérios, o que levaria à sua degradação e consequente desprestígio. O que levaria as classes médias a tentar colocar os seus filhos nas escolas privadas, cujos lucros subiriam em flecha.

Isto já não falando da ideia peregrina de que o serviço público pode ser prosseguido, de forma indiferente, por entidades públicas ou privadas. Não, porque só as primeiras têm aquele como seu único objetivo; já as segundas têm como objetivo primordial a obtenção de um lucro. O eventual serviço público que possam prestar estará sempre subordinado a este último.

Acresce, ainda, que os colégios privados têm violado, sistematicamente, os próprios contratos de associação, ao ir procurar alunos/as em áreas exteriores à(s) freguesia(s) onde existe carência de oferta pública.

Além do mais, violam, também, de forma grosseira, o próprio contrato coletivo de trabalho de professores e funcionários, que são explorados até ao tutano. Há alguns colegas do ensino privado que chegam a trabalhar na escola 40 horas por semana, incluindo alguns sábados e domingos. A falta de alternativas de emprego explica porque muitos/as suportam esses abusos. Muitas vezes, esses ritmos de trabalho servem para afastar os profissionais mais antigos (abrangidos pelo CCT) e contratar jovens precários sem direitos.

Por fim, é lamentável que os donos dos estabelecimentos do ensino particular procurem assustar professores e funcionários, alunos e suas famílias, instrumentalizando-os e coagindo-as a servir de “peões” na sua cruzada.

Esperemos que o governo não ceda às pressões e acabe, de vez, com a “mama” dos rentistas, que só são liberais e “empreendedores” à custa dos dinheiros públicos.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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