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Mais cedo que tarde, o rigor e o bom senso vão vencer o preconceito

A AR aprovou uma resolução que "recomenda ao Governo a adopção de medidas que visem combater a actual discriminação dos homossexuais e bissexuais nos serviços de recolha de sangue". Surpreendentemente, a Ministra da Saúde veio, quatro meses depois, dizer que a discriminação e o preconceito são para manter.

Depois de muitas peripécias, de vários debates públicos, de múltiplas discussões na Assembleia da República, foi finalmente aprovada e publicada a 7 de Maio uma Resolução da Assembleia da República que "recomenda ao Governo a adopção de medidas que visem combater a actual discriminação dos homossexuais e bissexuais nos serviços de recolha de sangue". A questão, na verdade, é simples: devem ser prevenidos todos os comportamentos de risco e na selecção de dadores devemos ser muito exigentes. Achar que excluindo pessoas pelo simples facto de serem homossexuais estamos resolvidos é um preconceito e um perigo para a saúde pública. Porque esse critério entende a homossexualidade como comportamento de risco, o que é absurdo: é a forma como cada um se protege que deve contar e o sexo da pessoa com quem dormimos não diz nada sobre se nos protegemos ou não. Em segundo lugar, esse critério é perigoso porque dá a ideia de que, se excluirmos homossexuais, podemos estar descansados, mas não podemos: ao excluir homossexuais não estamos a assegurar que quem tem comportamentos de risco é excluído.

A Resolução do Bloco foi aprovada no Plenário da Assembleia da República sem nenhum voto contra, depois de várias discussões na Comissão de Saúde e de Direitos, Liberdades e Garantias. Lembro-me de como foram essas discussões e de como não houve nenhum deputado, de nenhuma bancada, que conseguisse defender a manutenção da pergunta sobre orientação sexual. Por uma razão simples: ela é estúpida e inútil. Tão inútil que muitos dos questionários do próprio Instituto Português do Sangue já não a fazem, o que prova que ela não serve para nada.

Acontece que há serviços que ainda a fazem. Na discussão no Parlamento, distribuí o caso do André Correia, um estudante de medicina, dador há vários anos e que, numa das vezes que foi dar sangue ao Hospital de Santo António, no Porto, teve de responder à pergunta sobre a sua orientação sexual. Como respondeu que era homossexual, foi excluído. Ainda que não tenha tido nenhum comportamento de risco. E são estas situações, em que se desperdiça a generosidade de um cidadão e em que o preconceito prevalece sobre o interesse público e os critérios clínicos e científicos, que não podem continuar a acontecer.

Surpreendentemente, a Ministra da Saúde veio, quatro meses depois, dizer que a discriminação e o preconceito são para manter, utilizando argumentos cujo único objectivo é confundir a opinião pública: "não há nenhuma discriminação do ponto de vista da orientação sexual. Aquilo que há é um rigor grande em relação aos comportamentos sexuais das pessoas que possam pôr em risco a vida das pessoas a quem vão dar sangue, independentemente de serem homo ou heterossexuais", disse Ana Jorge. Só que esta declaração é, objectivamente, uma mentira. Isto é o que devia acontecer, mas não é o que acontece. O questionário do Santo António, por exemplo, tem a seguinte pergunta, que é a número 12: "Se é homem, já teve relações sexuais com outro homem?". O que é que isso nos diz sobre se a pessoa se protegeu ou não? Qual é o rigor desta pergunta? Nada e nenhum.

O Coordenador Nacional para a Infecção VIH/sida, Henrique Barros, defendeu que ”não há qualquer sentido em eliminar dadores com base na sua orientação sexual». O Bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, também. A Comissária Europeia da Saúde, Androulla Vassiliou, lembrou que “não existe qualquer regra especial que abranja homossexuais. Isso é um mito. A preocupação é sempre com a segurança e a qualidade do sangue”. Efectivamente, as mais recentes Directivas Europeias não aconselham essa discriminação. Países como a Espanha e a Itália há já algum tempo que retiraram, através de uma decisão política, a homossexualidade da lista dos factores de exclusão, sem nunca terem registado qualquer aumento na incidência de infecções no sangue colhido. E o facto de muitos serviços de recolha de sangue terem por iniciativa próprio deixado de fazer perguntas sobre orientação sexual, concentrando os questionários sobre os comportamentos de risco, demonstra que aquele tipo de perguntas não é considerada relevante pelos próprios técnicos.

A decisão do Governo é por isso errada, preconceituosa e desrespeitadora do Parlamento. Errada, porque significa que o Governo não assume a sua responsabilidade na elaboração de normas claras e cientificamente validadas de selecção dos dadores. Preconceituosa, porque se mantém uma discriminação, fazendo prevalecer o preconceito aos critérios científicos e técnicos. Desrespeitadora do Parlamento, porque o Governo decide ignorar uma recomendação aprovada sem votos contra pela Assembleia da República, ou seja, aprovada inclusive pelo PS.

Mas o bom senso vai ter de ganhar. É ridículo que o Governo prolongue este folhetim e este desafio à Assembleia da República. Mas se o Governo é incapaz de resolver este problema, o Parlamento deverá tomá-lo em mãos e legislar. Apresentaremos, mal a Assembleia da República reabra, um projecto de lei que altera o Decreto-Lei 267/2007, de 24 de Julho, clarificando as regras para a selecção de dadores e impedindo a discriminação de dadores com base na sua orientação sexual. Se os deputados dos outros grupos parlamentares agirem em coerência com o que pensam e com o que votaram há quatro meses, o fim da discriminação será lei. A partir desse momento, e apesar dos seus preconceitos e da sua vontade, o Governo terá de respeitar as leis da República.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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