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A maioria absoluta foi tóxica, ou tinha dúvidas?
A demissão de António Costa termina um ciclo político. No contexto, era inevitável, e não deixa de ser um sarcasmo histórico que o epicentro seja Galamba, o ministro tornado mais irremodelável por uma extravagância do primeiro-ministro. E agora ninguém sabe o que se vai passar. A dúvida não é tanto sobre a resposta institucional: escrevendo dois dias antes da publicação deste jornal, suponho que o Presidente, convocando eleições, as definirá, permitindo ao PS realizar o seu congresso e escolher entre Fernando Medina e Pedro Nuno Santos. A questão é como se vai redefinir o mapa político, na certeza de que Montenegro chefiará o PSD, radicalizará o seu discurso no caminho da extrema-direita, desmentindo e preparando um acordo com a IL e o Chega; que o PS chegará às eleições na situação em que a sua anterior vitória absoluta se tornou o seu cadastro, e a esquerda tem pela frente uma escolha difícil para a mobilização de uma alternativa imediata e consistente.
Duas prevenções
Não há notícia mais chocante do que uma investigação sobre corrupção de membros do Governo que nos deviam dela proteger, exceto a de uma condenação. A surpresa do primeiro tipo é mais frequente do que a certeza do segundo, o que sugere desde já uma precaução. Acrescento um outro cuidado, que repito sempre que as notícias são ocupadas por casos judiciais: nem todos os casos são suportados por factos, dado que a publicitação da justiça gerou comportamentos que, à falta de melhor, são comunicacionais. A multiplicação de fugas ao segredo de justiça, com a divulgação de peças metodicamente manipuladas para provar o ponto de vista do divulgador do segredo, tornou-se tão banal que já não imaginamos como poderia a justiça cumprir o seu papel sem ser viciada por estes ataques. Isso tem-me levado a suspeitar dos inícios estrondosos de processos. Não deixarei de o fazer agora. Mas pergunto, face aos sinais dos anos recentes: e se este problema for pior ainda?
Sobrou alguém?
O que os últimos dois anos provaram é que a maioria absoluta é tóxica, e não porque estas alegações se provem verdadeiras, o que só saberemos algum dia. Ela foi tóxica para a vida política e social nacional desde o seu primeiro dia.
Tóxica foi a sua negociação na saúde. Recusar aos profissionais da saúde a recuperação do seu poder de compra era absurdo e não podia deixar de se chocar com o facto de o Governo festejar um sucesso orçamental que o fazia nadar em dinheiro. Era igualmente tóxico impor salários baixos para forçar centenas de horas extraordinárias e supor que isso é uma estrutura adequada para o SNS. Pior do que tóxico foi impor o aumento do número legal dessas horas extraordinárias e chamar-lhe “reforma da organização”.
Só vencerá a direita uma esquerda que seja mais exigente do que nunca
Tóxico foi a ministra da Segurança Social ter apresentado um documento falso para anunciar aos reformados que, se a lei não fosse modificada para que as pensões deixassem de ser ajustadas pela inflação, reduzindo o seu valor real, o sistema perderia 13 anos de sustentabilidade, e tóxico foi o primeiro-ministro repetir a mentira, até ter percebido que perdia demasiados votos com esta coisa. Tóxico foi o teimoso esforço para evitar que uma grande empresa pagasse o imposto devido pelo maior negócio da década em Portugal, a venda da concessão de barragens; só a persistente pressão pública conseguiu que o Governo recuasse. E tóxica foi a política para o aumento do preço da habitação, com os vistos gold, os nómadas digitais e os favores aos fundos financeiros. No que o Governo ganhou, o país perdeu.
Veja-se o exemplo do uso dos serviços secretos, pelo motivo porventura esquecido que era a revelação de uma reunião no ministério de Galamba, elevando-se depois a comédia até ao encerramento do debate do Orçamento. O facto é que do negócio do lítio, um apetitoso avanço por empresas habituadas a dominar Governos, ao hidrogénio verde, uma sofisticada lenda para distrair o país sobre o défice de investimento público, até à estranhíssima venda da TAP (um colega de Governo competiu no ranking com a operação Efacec), aquele ministério sugeria que nada é o que parece. A política foi reduzida a uma farsa.
E eleições para quê?
O problema para o centro não é então como responderá à camuflada convergência das direitas. O medo funcionou uma vez, terá uma derrota autoconfirmada se lhe surgir a tentação de repetir o truque, pois o que não pode pedir de forma alguma é uma nova maioria absoluta, seria insultar a experiência das pessoas. O problema será precisamente o contrário: como assegurar que, tendo perdido a maioria absoluta, se compromete a fazer o contrário do que o trouxe aqui.
Em contrapartida, as esquerdas podem lembrar que a ‘geringonça’ foi o remédio que protegeu o país da bolha autoritária que é uma maioria absoluta. É certo, mas isso não fará uma política, pois a história não se repete. O facto de agora ser necessário não a substituição de um Governo de direita, mas antes assegurar a resposta estrutural a problemas criados ou agravados pelo Governo cessante, na política de industrialização, de investimento e de salários ou na organização dos bens comuns da democracia que fazem o bem-estar do povo, incluindo saúde, habitação, educação e política ambiental, exige agora um programa mais profundo e detalhado do que em qualquer momento do passado. A minha conclusão é que só vencerá a direita uma esquerda que seja mais exigente do que nunca.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 10 de novembro de 2023
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