A entrevista dada por Pedro Passos Coelho à TVI esta quarta-feira teve algumas novidades. Talvez a mais significativa tenha sido a declaração de que o corte de 4 mil milhões a anunciar em Fevereiro será quase exclusivamente dirigido às “prestações sociais”; e que a Educação será um dos seus alvos preferenciais desta "redução da despesa". Para quem tinha dúvidas, começou a levantar-se o pano sobre o que quererá dizer na prática a “refundação do Estado social”. Para os adeptos caseiros da "doutrina do choque", está na hora de “aproveitar a crise”: foi esta reveladora expressão que o primeiro-ministro deixou escapar nos momentos finais da conversa.
As palavras de Passos Coelho foram claras quanto à vontade de perverter o carácter público da educação. Evocando a Constituição, referiu a diferença entre a saúde e a educação e notou que nesta última existe “margem de liberdade” para introduzir um sistema de financiamento “mais repartido” entre os cidadãos e o Estado. Abre-se assim a porta ao pagamento de propinas no ensino público secundário. Constitucionalistas da área do PSD, como Costa Andrade e Pedro Bacelar Gouveia, já vieram observar que a obrigatoriedade da frequência do secundário não lhes parece ferida com este ataque à gratuitidade. Jorge Miranda discorda e diz que uma e outra estão necessariamente relacionadas. Estão abertas as hostilidades.
Convém introduzir aqui com um parêntesis para dizer duas coisas óbvias. A primeira: atualmente, em Portugal, a educação até ao 12.º ano já não é gratuita. Basta perguntar às famílias quanto gastam em transportes, manuais escolares e outros materiais indispensáveis ao longo do ano. Ou ouvirmos as notícias sobre crianças que frequentam a escola com fome e que aí não usufruem de uma refeição gratuita, como num país decente aconteceria. A segunda:o argumento que estaríamos a cortar na despesa/Estado social ao invés de estarmos a aumentar a receita/impostos não colhe neste caso. A introdução de uma propina seria na verdade a introdução de um novo imposto, neste caso com efeitos muito negativos na qualidade do ensino e na coesão social. Dito isto, avancemos.
No concreto, ainda não ficámos a conhecer quais serão os planos do governo. Mas sabemos que, caso a intenção genérica avance, ela significará um ataque sem precedentes à Escola pública, gratuita e de qualidade. Em primeiro lugar, a introdução de propinas desincentivará a frequência do ensino secundário, num país que tem ainda elevados índices de abandono escolar. Segundo o último relatório da OCDE, apenas 52% dos jovens portugueses com idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos terminou o ensino secundário. Se a isto juntarmos o aumento da pobreza e da perceção que a escola não dá um futuro, temos um quadro muito pouco auspicioso.
Em segundo lugar, um sistema de co-pagamentos – porventura mesclado com algumas bolsas ou isenções - reforçará as escolas privadas. Rasurada a gratuitidade, o campo de negócio das escolas privadas – grande parte delas vivendo hoje à conta de “contratos de associação” ilegítimos – expande-se fortemente e parecerá plausível a algumas fatias sociais o discurso sobre a “liberdade de escolha”. Se pagamos nesta escola pública, porque não ir para aquela escola privada? Retirando do ensino público famílias com maior capital económico e simbólico, abrandará fortemente um dos factores de pressão para que este se mantenha de qualidade. O resultado será uma sociedade menos escolarizada, mais estratificada e com mais desigualdades de raiz.
Se as palavras de Passos Coelho foram claras, elas parecem ter já causado incómodo. Nuno Crato afirmou ontem que o carácter gratuito do ensino obrigatório não estará em causa; o secretário de Estado João Casanova de Almeida disse algo diferente: que “ainda é cedo para discutir a matéria”. O Diário de Notícias fala hoje de outros cenários que poderão estar em cima da mesa: reforço dos contratos de associação, cheques-ensino, concessão de escolas públicas a privados. Qualquer uma destas soluções mostra bem que o plano do governo passa por estender os espaços de negócio no ensino e atacar a sua universalidade. Como Nuno Serra bem identificou há uns tempos atrás, encolher, degradar e dualizar são os desígnios do governo para a área. Foi agora dado um passo em frente. Saibamos responder à altura.