No passado dia 27 de maio, a Assembleia Nacional Francesa aprovou a lei que reconhece aos franceses o direito à ajuda para morrer. Dez anos de debates desde que o projeto inicial foi apresentado pelas esquerdas. O Senado tem agora a responsabilidade de concluir o processo legislativo, porventura introduzindo ainda algumas alterações ao texto da lei. Mas o passo decisivo está dado e a França junta-se ao número crescente de países que, na Europa e para além dela, têm vindo a pôr fim à criminalização do direito a morrer com dignidade.
O alento que esta histórica decisão do parlamento francês traz a todos os que têm feito sua esta batalha contradiz os ventos de retração que a despenalização da eutanásia enfrenta em Portugal. Depois de repetidas aprovações na Assembleia da República, para dar resposta a vetos presidenciais e dúvidas constitucionais, a lei de despenalização da morte medicamente assistida foi adotada por larga maioria parlamentar na sua versão final. Dispunha ela mesma que o Governo a deveria regulamentar num curto lapso temporal para que a sua entrada em vigor se verificasse. O Governo da maioria absoluta do Partido Socialista, irresponsavelmente, não o fez. O Governo da Aliança Democrática fez pior: alegou a pendência de um recurso de fiscalização sucessiva da constitucionalidade da lei para, com cinismo, não cumprir o seu dever legal de a regulamentar. O Tribunal Constitucional, esse, prosseguiu o seu trajeto anterior de declarar inconformidades com a Constituição em prestações. É a própria previsibilidade jurídica do Estado de Direito que é ofendida quando a jurisprudência do órgão de fiscalização da constitucionalidade das leis muda sempre que muda o relator dos respetivos pareceres. Três relatores, três pareceres, três juízos diferentes sobre a conformidade da lei com a Constituição – um estudo de caso sobre o Estado de Direito em Portugal.
A nova composição parlamentar será certamente confrontada com iniciativas da extrema-direita para afastar esse estorvo maior que é existir uma lei aprovada pela Assembleia da República. Veremos então se o “não é não” cede ou não ao preconceito ideológico e ao autoritarismo que quer manter a imposição de um só modelo de fim de vida, independentemente da agressão que isso signifique à dignidade de cada pessoa.
Soubemos sempre que esta batalha ia ser longa. Será. Mas fá-la-emos com a mesma determinação que tivemos desde o início. Agora é o tempo de dar força a um movimento de opinião grande, plural, firme na resistência aos inimigos da despenalização, que envolva gente qualificada e exemplos de outros países. E, sobretudo, que dê voz a todas as histórias de quem lutou por este direito e de quem teve amigos e familiares que sofreram uma morte que os violentou por causa do absolutismo da criminalização. Olhemos para França e ganhemos confiança.
