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Lucros caídos do céu

Estas grandes empresas que estão a lucrar com a crise distribuem dividendos aos seus iluminados acionistas; apesar da economia estar a contrair, queixam-se que já contribuem demasiado para a sociedade enquanto transferem os seus extraordinários rendimentos para offshores.

Os “windfall profit” não correspondem a qualquer investimento, esforço ou empreendedorismo: os lucros caídos do céu têm a maravilhosa qualidade de se materializarem como por magia no bolso dos acionistas de algumas grandes empresas. Aliás, uma das traduções mais certeiras da expressão é a que remete para “herança inesperada”, deixando claro que se trata de um rendimento fortuitamente caído no colo de alguém.

Infelizmente, e para nossa desgraça, os sortudos são sempre os mesmos. As treze empresas referência da bolsa portuguesa (PSI) obtiveram lucros conjuntos de 1.455 milhões de euros entre abril e junho, o que representa um aumento de 86% face ao segundo trimestre de 2021. A EDP, a Galp Energia e a EDP Renováveis atingiram lucros de 846 milhões de euros, o que representa um crescimento de mais de 100%. Ao lucro das energéticas somam-se os ganhos das grandes cadeias de supermercados (a Sonae lucrou 118 milhões de euros nos primeiros seis meses deste ano, o dobro do mesmo período no ano passado, a Jerónimo Martins outro tanto) e, claro, da banca.

Não estamos a falar da maioria das empresas em Portugal, estas também a braços com o aumento dos preços da energia, dos combustíveis e dos juros. Estas grandes empresas que estão a lucrar com a crise não desesperam com a conta da luz - distribuem dividendos aos seus iluminados acionistas; apesar da economia estar a contrair, queixam-se que já contribuem demasiado para a sociedade enquanto transferem os seus extraordinários rendimentos para offshores.

O que estas empresas estão a fazer é um saque. É o privilégio de uma pequena elite que aproveitou a tendência inflacionista provocada pela guerra para subir preços à custa do salário ou da pensão da grande maioria, tendo como único objetivo seu próprio enriquecimento. Mas se essa maioria exigir também ver aumentado o salário, ou a prestação a que tem direito, os grandes patrões, de bolsos cheios, logo dirão “não, porque isso agrava a inflação”.

Esta brutalidade do capitalismo ser é condenável aos olhos de qualquer democrata cristão, social democrata, ou mesmo de qualquer católico ou humanista. Nas limpas palavras de António Guterres: “é imoral que as empresas de petróleo e gás obtenham lucros recordes com esta crise energética, à custa das pessoas e comunidades mais pobres”.

Um socialista, por outro lado, teria ainda mais facilidade em perceber que estamos a assistir impavidamente a uma enorme transferência de riqueza do trabalho para o capital, e identificaria nessa, contradição de classes, os empecilhos à redistribuição de riqueza e à igualdade social. Quanto mais impávidos, mais pobres.

O mundo inteiro está a debater os lucros excessivos dos glutões da crise. Basta ouvir a Comissão Europeia, o Presidente norte-americano ou qualquer instituição financeira internacional para perceber que a ideia de taxar os lucros excessivos é bastante razoável e é até - tendo em conta as consequências da exclusão social no crescimento da extrema direita - bastante sensata. Só António Costa e o Partido Socialista parecem não ter nada a ver com assunto.

Perante a proposta de taxar os lucros excessivos, António Costa desfia sinónimos: talvez, quiçá, porventura, quem sabe, possivelmente. Em alternativa, oferece um redondo não. Mais recentemente atualizou a sua resposta para: se os outros fizerem, nós vamos atrás.

O problema não tem sido a falta de “outros” para alumiar o caminho. A Holanda, por exemplo, apesar de andar sempre na boca dos liberais, acabou de anunciar o aumento do imposto sobre o lucro das empresas para 34% em 2025, a eliminação da dedução por habitação em 2024 e a subida do imposto de transmissões patrimoniais quando se adquirir um imóvel residencial ou comercial, além da limitação dos preços do gás e da eletricidade e medidas de combate à precariedade.

O problema é que o projeto do Partido Socialista para o país não passa por afrontar o grande poder económico para garantir a distribuição de riqueza num momento de crise, mesmo quando é evidente que esse poder está a lixar o povo. Sobre isso não há nada a lamentar a não ser as vidas mais difíceis dos trabalhadores. É por eles que a esquerda tem de crescer.

Artigo publicado no jornal “I” a 22 de setembro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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