A longa noite na patrulha do ministro Pedro Nuno Santos

porMaria Manuel Rola

15 de dezembro 2023 - 15:53
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O Bloco não descobriu ontem o problema da habitação. Percebe-se a motivação de Pedro Nuno Santos para querer hoje apagar tantas propostas: foi o PS - e o Ministério da Habitação, que ocupou durante quatro anos - quem as desdenhou.

Ouvi recentemente um candidato a secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, insistir que o Partido Socialista é o campeão da defesa da habitação, preocupação que nenhum outro partido pode reivindicar, chegando a acusar o Bloco de não ter tido nunca no direito à habitação uma prioridade política.

O ex-ministro, tido por grande geringoncista, deveria cuidar melhor da memória pública dessa fase política em que participou. É curioso que se esqueça que um dos grupos de trabalho criados com o Bloco de Esquerda no âmbito dos acordos de 2015 foi precisamente sobre o problema habitacional que se agigantava, nomeadamente pela aplicação da Lei Cristas no regime do arrendamento urbano, mas também no arrendamento apoiado. Em 2016, o Grupo de Trabalho Políticas de Habitação, Crédito Imobiliário e Tributação do Património Imobiliário, que integrou membros do governo e deputados do PS e do Bloco, apresentou o seu relatório, mas algumas das medidas ali acordadas tardaram em ver a luz do dia. Foi preciso esperar pelo orçamento para 2023, por exemplo, para limitar a isenção de IMI na transferência sucessiva de propriedade de prédios entre empresas que têm por objeto a venda desse edifício.

Mas para fazer jus à atuação do Bloco no tema da Habitação, podemos recuar ainda mais: a única medida relevante tomada durante os anos de governo do PS na tributação do património foi o Adicional ao IMI - o célebre imposto Mortágua -, que a direita diaboliza sempre que pode, mas que tem vindo a recolher aproximadamente 145 milhões de euros por ano, abrange cerca de 550 mil prédios, 14.000 pessoas singulares e 65.000 pessoas coletivas ou empresas, apesar de isentar empresas turísticas. Penaliza a propriedade de luxo ao mesmo tempo que tanta gente se vê sem casa e contribui para o reforço financeiro do Fundo de Estabilidade da Segurança Social.

Esquece-se ainda, o candidato a líder, que o Bloco de Esquerda - logo em julho de 2016! - propôs precisamente um programa de habitação pública. Dois anos antes da criação do Programa Primeiro Direito, o Bloco já propunha a atualização do recenseamento das carências, o aumento da oferta pública integrada na malha urbana, a diversificação do financiamento, realojamentos dignos e a reabilitação dos fogos do IHRU. Em 2018, é apresentado o programa Primeiro Direito - a par do programa de Arrendamento Acessível - mas o recenseamento não era rigoroso - identificava apenas 26 mil carências -, o orçamento era diminuto e pobremente executado, a reabilitação dos fogos do IHRU abandonados tardou (e ainda tarda), os despejos mantiveram-se, enquanto o “reencaminhamento dos moradores em iminência de despejo para atendimento de proximidade no sentido de se encontrarem alternativas” - proposto pelo Grupo de Trabalho PS/Bloco e previsto depois na Lei de Bases da Habitação - nunca se tornou uma realidade que proteja quem se vê sem habitação digna e em processos sociais violentíssimos.

De uma assentada, o ex-ministro da Habitação esquece todo o histórico de propostas do Bloco na sua área, propostas que acompanhou sempre diretamente a partir do governo: o regime de impenhorabilidade de habitação própria por dívidas fiscais, que o Bloco propôs no final de 2015, a reversão dos aumentos das rendas apoiadas, proposto no início de 2016, a suspensão dos despejos por efeito da Lei Cristas, nomeadamente para pessoas com mais de 65 anos, a eliminação dos Vistos Gold e do Regime dos Residentes Não Habituais, o alargamento do regime do direito de preferência na sequência do caso da Fidelidade ou ainda a alteração à isenção de IMT nos edifícios comprados para revenda. Em 2018, a proposta do Bloco para a revisão do regime de Alojamento Local já previa o agravamento do efeito do AL na crise da habitação, mas o Partido Socialista optou por entregar aos municípios aquilo que saberia que estes não iriam fazer: regulação.

Vale a pena lembrar uma proposta em particular: a criminalização do Assédio Imobiliário, feita em 2018. Naquela altura, intensificaram-se as pressões sobre inquilinos idosos nos centros históricos do Porto e Lisboa, protegidos pela lei mas frequentemente ameaçados e assustados por senhorios ou facilitadores sem escrúpulos. Quando Pedro Nuno Santos se tornou Ministro da Habitação, em fevereiro de 2019, esta lei estava a ser publicada em Diário da República, ficando sob responsabilidade do Governo regulamentá-la no prazo de seis meses. Só em novembro de 2021 foi publicada a Portaria, sem que dela fosse dada publicidade de modo a tornar efetiva a proteção prevista.

O Bloco não descobriu ontem o problema da habitação. Percebe-se a motivação de Pedro Nuno Santos para querer hoje apagar tantas propostas: foi o PS - e o Ministério da Habitação, que ocupou durante quatro anos - quem as desdenhou. E essa política, que Pedro Nuno Santos defende até hoje, deixou instalar-se a maior crise na habitação que a democracia já conheceu, não se prevê que com programa idêntico o resultado venha a ser diferente.

Maria Manuel Rola
Sobre o/a autor(a)

Maria Manuel Rola

Designer gráfica e ativista contra a precariedade. Dirigente nacional do Bloco de Esquerda
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