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Livrai-nos do mal

O silêncio sepulcral que a Igreja portuguesa mantém sobre os abusos sexuais cometidos dentro da organização é perturbador. O sentimento de impunidade é uma malha tecida pela protecção que a suposta virtude lhe confere. É esta, também, a felicidade de vivermos no tempo do Papa Francisco.

O silêncio sepulcral que a Igreja portuguesa mantém sobre os abusos sexuais cometidos dentro da organização, décadas a fio de um terço-ponta-do-icebergue, terça parte de um rosário de crimes e pecados que nem 50 ave-marias levam ou lavam, é perturbador. O sentimento de impunidade é uma malha tecida pela protecção que a suposta virtude lhe confere. É esta, também, a felicidade de vivermos no tempo do Papa Francisco. Esta, a de podermos acreditar em redenção. Foi pela sua iniciativa, na cimeira de 2019 em Roma, que se determinou que todas as dioceses do Mundo teriam que criar uma comissão de protecção de menores, sendo escrito um manual sobre os procedimentos a tomar no caso de os bispos terem conhecimento de quaisquer denúncias que envolvessem abusos sexuais de menores por qualquer membro da Igreja. Os números são aterradores. Assistimos a como o episcopado francês pediu "perdão" às 300 mil vítimas de pedofilia da Igreja francesa entre 1950 e 2020, pelas 216 mil crianças e menores, 80% das quais do sexo masculino, que foram abusados ou agredidos sexualmente às mãos de clérigos católicos ou religiosos.

As palavras ditas e as que ficam por dizer. É preocupante a reacção da Igreja Católica portuguesa, pela voz de D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, à abertura de dez inquéritos pelo Ministério Público na sequência das 17 denúncias anónimas remetidas à Procuradoria-Geral da República pela "Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica", criada em Janeiro e liderada por Pedro Strecht. Não só porque é uma altiva oração pela omissão, mas também pelas notícias que dão conta de que, à semelhança do seu predecessor D. José Policarpo, nada fez relativamente às denúncias recebidas relativamente a um padre que tinha a seu cargo duas paróquias a norte do distrito de Lisboa, nos anos 90. Inacção, apesar das sucessivas acusações e de um encontro com a vítima, promovido pela mãe, em 2019. Afastado em 2002 para uma capelania de hospital, o alegado agressor ainda foi a tempo de fundar uma associação privada, não canónica, com o objectivo de acolher crianças, jovens e idosos num grupo cristão. Todo um rosário.

Desde Janeiro, a Comissão Independente já validou mais de 350 denúncias e está, naturalmente, atenta aos casos já prescritos pela possibilidade de prossecução da actividade criminosa. Porque são crimes, o que está em causa. Actividade criminosa, sucessiva e reiterada, oculta pela crença no suposto antagonismo de valores. É, como tal, tão incompreensível a particular protomudez de D. Manuel Clemente, como são inaceitáveis as declarações do presidente da República (PR). Marcelo não pode falar "pessoalmente" perante o assomo de uma realidade tão hedionda, como se possuísse elementos para acreditar que a Igreja Católica portuguesa nunca varreria para baixo do seu manto os casos que agora se conhecem, somam e agravam. O acto de fé do PR não nos livra do mal. Pelo contrário. Não encontra, sequer, respaldo na realidade comparada dos crimes cometidos pela Igreja em França, Irlanda ou na Alemanha, onde a fé nos homens não foi objecto de apreciação pelo poder político. Prudência, neste caso, é pisar no acelerador do terço ou do completo rosário, assumir os pecados e pagar pelos crimes. E pedir desculpa.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 29 de julho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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