Vinte e quatro mil cidadãos e cidadãs apresentaram à Assembleia da República uma iniciativa legislativa para alargar as licenças parentais. Não é a primeira vez, mas é um acontecimento raro: o Parlamento debateu e votou um projeto de lei vindo diretamente da mobilização popular. A iniciativa foi aprovada em setembro, na generalidade, e prevê que a licença de parentalidade inicial, que hoje é paga a 100% apenas durante 120 dias, passe a ser paga a 100% durante 180 dias (passe de quatro para seis meses). A modalidade de pagamento a 83% também será alargada em dois meses, para 210 dias. A medida teve voto favorável de todos os partidos, à exceção do PSD e do CDS. Não deixa de ser curioso que as questões da família e da natalidade sirvam à direita para espicaçar absurdas “guerras culturais”, assentes numa retórica reacionária, mas resultem numa prática vazia quando se trata do apoio concreto às famílias ou do direito das crianças a mais tempo com os seus progenitores.
O Governo reagiu à aprovação desta lei — que ainda será objeto de debate na especialidade e só daqui a alguns meses terá a sua redação final — agitando contra ela dois alarmes que importa contestar. Em primeiro lugar, numa inusitada carta ao Parlamento, logo a 7 de outubro, proclamou (sem explicar contas) que a medida teria um impacto orçamental de 400 milhões. O número não parecia credível: tudo indicava que o Governo estava a carregar nas tintas por jogo político. Por isso, solicitámos formalmente os cálculos que sustentavam tal afirmação. Chegaram na semana passada, acompanhados do segundo arremesso contra o alargamento dos direitos parentais. Na sua resposta, o Governo assume que o impacto da iniciativa legislativa cidadã é afinal cerca de metade do afirmado pelo Governo em outubro e fica por 228 milhões. Para fabricar os 400 milhões, o Governo teve de recorrer à seguinte engenharia: multiplica o impacto da medida por um número superior de crianças e soma milhões de euros de custos associados ao aumento do subsídio de desemprego e de políticas do IEFP, que poderiam ser, alegadamente, consequência da nova lei. Ou seja: o argumento do Governo passou a ser que o alargamento dos direitos parentais vai provocar mais desemprego e por isso é indesejável. Tem sido esse, defende o Governo, o “registo histórico”. Questionada mais do que uma vez sobre a fonte desse “registo”, a senhora ministra não a revelou.
É um facto que o exercício de direitos parentais é muitas vezes fator de discriminação no emprego, sobretudo das mulheres, ainda mais em contratos precários. É um problema transversal a todas as organizações e setores. Uma das formas de o combater é garantir, como proporemos na especialidade, tempos de licença mais igualitários e não transferíveis para ambos os progenitores, forçando por essa via uma mais equilibrada distribuição, entre homens e mulheres, dos cuidados às crianças. Mas é desonesto utilizar o argumento do aumento de desemprego, de modo fatalista e sem identificar fontes, para combater o alargamento de direitos.
Em vez da resignação e da invocação da desigualdade e da discriminação para impedir mais direitos, devemos sim acolher a proposta de 24 mil cidadãos e cidadãs, promovendo mais tempo de licença, com mecanismos de partilha, combate à discriminação, uma maior consciência sobre o exercício de direitos e articulando licenças com serviços públicos de cuidados, como as creches gratuitas em todo o território, criando mais vagas através de uma rede pública.
Acabemos também com o hábito de torturar os números. Se queremos fazer as contas ao impacto da medida, compare-se o custo dos dois meses extra da licença com os ganhos na igualdade, na saúde, no bem-estar e até no que custariam ao Estado esses dois meses em creche (que são um direito reconhecido por lei, ou não?). Alargar a licença parental é uma escolha política. Mesmo que o faça apesar do Governo e com a oposição do PSD e do CDS, o Parlamento vai concretizar esse progresso.
Artigo publicado no jornal Público a 19 de novembro de 2024
