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A lição exemplar do capitalismo suicida

O mais recente relatório da Convenção-Quadro para as Alterações Climáticas revela que os cortes propostos pelos governos para o Acordo de Paris prevêem um aumento de emissões de 16,3% até 2030, quando o mínimo seria um corte de 45 a 55%.

António Costa simboliza bem a presunção destes números: deixou a petrolífera Galp fazer o que bem quis em Matosinhos, empurrar quem trabalhava na refinaria para o desemprego, deslocar a produção para Sines, depois teceu-lhes elogios absurdos e agora bate no peito para tentar ganhar votos. Depois há quem se admire com o facto de as pessoas jovens não acreditarem no futuro e nas instituições.

Um novo relatório da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas deixou uma vez mais claro aquilo que há muito se sabe: os estados capitalistas pretendem avançar para o colapso da sociedade. De acordo com o relatório, o nível de emissões em 2030, se os planos nacionais forem cumpridos, será de um aumento de emissões de 16,3% em relação ao nível de emissões de 2010. Ora, para manter o aumento de temperatura abaixo de 1,5ºC até 2100, o nível de cortes necessário é de 45-55% das emissões em 2030 em relação às emissões de 2010. Isto significa que não só o capitalismo global não está a planear cortar emissões, mas aumentá-las. O nível de emissões previsto para 2030 é de 51.7 a 58.4 Gt CO2 eq, comparado com 47.3 Gt CO2 eq de 2010. Continua no entanto a prevalecer a narrativa de que estes cortes são opcionais ou que se pode cortar apenas umas coisinhas e logo a coisa se há de arranjar.

Perante este novo relatório, a administração Biden afirmou que o mesmo “não apresenta motivos suficientes” para parar a expansão de licenças para produção petrolífera no Golfo do México. Faz lembrar António Costa que queria, contra populações e rejeitando a ciência climática, que a Galp explorasse petróleo em Portugal.

Um estudo publicado no Lancet fez um inquérito a 10.000 jovens entre os 16 e os 25 anos de 10 países – Austrália, Brasil, Finlândia, França, Filipinas, Estados Unidos, Índia, Nigéria, Portugal e Reino Unido – concluindo que oitenta por cento acredita que o futuro é assustador, com dois terços a afirmar que os governos estão a falhar na resposta à crise climática. Cerca de dois terços das pessoas portuguesas entrevistadas acredita que a Humanidade está condenada e que o governo está a ignorar a angústia das novas gerações em relação à crise climática. A grande conclusão aqui é que os jovens percebem o que está a acontecer, apesar de todos os mecanismos de normalização dos sistema suicida em que vivemos os agredirem diariamente com apelos à esperança e ao progresso. A esperança que não se baseia em nada é apenas alienação. Para construir esperança, é preciso construir uma alternativa ao capitalismo. Nada simples, claro, em particular porque este sistema sempre dedicou uma parte muito substancial da sua energia e recursos a abafar e atacar qualquer alternativa. Não obstante, só aqui pode residir esperança. Esta sexta-feira há novamente greveclimática por todo o mundo, e em Portugal em duas escolas há alunas em greve permanente às aulas.

Para choque e espanto das franjas políticas mais liberais, António Costa ousou dizer que ia dar “uma lição exemplar” à Galp. Acorreram a defender patrono, em defesa da honra do despedimento e do lucro, descobrindo já na fanfarronice do primeiro-ministro autoritarismo, chavismo e até um papão dos empresários. António Costa não é nada disso. Em Maio elogiou o encerramento da refinaria por cortar emissões – apesar da deslocação da produção para a refinaria de Sines que significa que não há corte de emissões algum – e agora ajustou o discurso para a campanha em Matosinhos. Nunca tocou num só euro dos acionistas da Galp. A única coisa que António Costa faz questão de mostrar em público é a sua impotência perante a acção da Galp.

O governo propôs que os trabalhadores fossem requalificados através do Instituto do Emprego e Formação Profissional, desde que a empresa os mantivesse mais uns meses, e a Galp simplesmente recusou a “sugestão” (apesar do Estado ser um dos acionistas principais da empresa). A única lição que a Galp recebe aqui é que pode fazer o que bem quiser, como sempre pôde. E que António Costa pode dizer em público coisas que não têm qualquer significado ou qualquer consequência.

Não há transição justa ou possível dentro do sistema capitalista. As petrolíferas só poderão ser desmanteladas – e têm de sê-lo – fora do quadro normal da defesa inabalável da propriedade industrial privada e do lucro. Ter esperança e depositá-la nas instituições que construíram e que prometem inequivocamente o caos climático nas próximas décadas não é só alienação, é pulsão suicida.

Artigo publicado em expresso.pt a 23 de setembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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