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A lição de Rendeiro

A estratégia de fuga, assim como as contas e empresas de fachada que quase deram a João Rendeiro a impunidade, não se fizeram sozinhas. Foram necessários consultores e advogados, que desenharam os esquemas offshore.

Em 2013, João Rendeiro foi condenado pelo Banco de Portugal a uma multa de 1,5 milhões de euros. Em 2015, foi a CMVM que determinou uma sanção de um milhão de euros. Ambas as coimas foram confirmadas pela justiça, mas desde 2016 que o Tribunal da Concorrência de Santarém as tenta cobrar sem sucesso. Rendeiro sempre alegou que, perante o arresto judicial do seu património, não tinha meios para pagar aquelas coimas.

Porém, aquele mesmo arresto de bens não impediu o banqueiro condenado de orquestrar uma fuga de luxo: avião privado para Londres, depois para o Catar e finalmente para a África de Sul, sempre instalado nos melhores hotéis e com recurso a tecnologia israelita de ponta para ocultar as suas comunicações. Antes mesmo de ter cadastro, já Rendeiro investia em imobiliário na África do Sul, com vista à obtenção de um visto de residência, num esquema em tudo semelhante aos vistos gold portugueses.

Se desta vez o crime não compensou, devemo-lo ao trabalho da Polícia Judiciária, a quem Rui Rio só soube dirigir lamentáveis e despropositadas acusações de eleitoralismo. Resta agora a igualmente difícil tarefa de identificar e recuperar os milhões escondidos em offshores por todo o mundo, através de contas em reputados bancos, como o HSBC ou o Crédit Suisse.

A estratégia de fuga, assim como as contas e empresas de fachada que quase deram a João Rendeiro a impunidade, não se fizeram sozinhas. Foram necessários consultores e advogados, que desenharam os esquemas offshore, que aconselharam a melhor utilização dos regimes legais e fiscais de cada jurisdição. No caso de Rendeiro, um desses juristas arquitetos de labirintos foi José Miguel Júdice, célebre avaliador televisivo dos vícios e virtudes da praça. Mas há muitos outros fazedores de fugas célebres. André Ventura, quando já era deputado, acumulava rendimentos da consultora Finpartner (fornecedora de serviços de planeamento fiscal e vistos gold).

Enquanto houver offshores, o crime económico terá sempre instrumentos para sair impune e recompensar os seus perpetradores. É certo que não se decreta o fim dos regimes do Panamá ou das Bahamas, mas isso não quer dizer que toleremos a sua utilização. Se só se encontra maus motivos para recorrer a estas jurisdições, porque não se proíbe então a sua utilização? Criminalize-se o recurso a offshores, deem-se meios às entidades de investigação e acabe-se com a vergonha dos vistos gold em Portugal. Não será o fim do crime económico, mas seria o fim da hipocrisia dos partidos que dizem combater a corrupção enquanto convivem bem com os seus instrumentos de preferência.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 214 de dezembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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