
Foi uma lição notável que ontem teve lugar. Sobre a pessoa - o José João Abrantes, alentejano, professor, jurista, presidente do Tribunal Constitucional - e as suas circunstâncias, como anunciou logo de início. Um percurso de quase 70 anos (cumprir-se-ão ainda este mês) passado em revista, com enorme sensibilidade, inteligência e humor. Das brincadeiras em Alter do Chão com os amigos, de como aprendeu a nadar e de como foi multado por jogar futebol na rua, dos colegas de escola que ficaram pelo caminho nos estudos por conta das desigualdades, dos deserdados da sorte e da fidelidade aos conterrâneos do Alentejo. Mas também dos anos de Lisboa, das alegrias do futebol, de como nasceu a paixão pela Académica. E ainda do despertar para a política, da inspiração da revolução cubana, da importância do catolicismo progressista e do padre Alberto Neto da Capela do Rato, do concílio Vaticano II, da importância perene da opção preferencial pelos pobres, da tristeza com a invasão da Checoslováquia, da Primavera de Praga, do Jean Ferrat e do seu “Camarade”. Do movimento dos liceus em Lisboa, das lutas antifascistas, da crise de 1969, do assassinato de Ribeiro dos Santos. Das esquerdas à esquerda, dos maoistas, do percurso de alguns que se radicalizaram para a direita e que mereceram um elegante escárnio. Da importância de ainda e sempre lutarmos pelos valores que nos inspiraram na juventude. Da beleza de ser professor, dos seus múltiplos mestres e dos estudantes com quem aprendeu sempre. Do Direito, do direito do trabalho e dos seus inícios depois do 25 de abril, do grupo dos nove (não o que se conhece do MFA, mas o dos nove professores de direito do trabalho em Lisboa), dos direitos concretos contra as ficções liberais da autonomia das partes e da liberdade abstrata numa sociedade dividida pela desigualdade de classes. Do trabalho, ainda, como fundamento da República democrática (como lembra a Constituição italiana do pós-guerra), do compromisso com quem trabalha e menos tem, do compromisso com uma forma de estar que seja “antropologicamente amiga do trabalho”. Do Estado democrático de direito e do Estado social capaz de dar densidade às aspirações de liberdade e de dignidade da pessoa.
Foi uma lição notável, repito. Divertida, profunda, sábia, tocante, em que os considerandos jurídicos se entrelaçaram com o relato de vida, em que as inquietações políticas se intercalaram com as alegrias e as tristezas, a começar pelas desportivas. Que terminou com uma justa e bela homenagem à nossa Constituição de 1976, expressão do 25 de abril. Não por acaso, e de forma corajosa, as últimas palavras desta “última lição” do José João Abrantes foram as do preâmbulo da Constituição, um preâmbulo esconjurado por tantos como sendo demasiado marcado e intempestivo, tão fora da moda neoliberal e tão nos antipodas dos tempos obscuros. “Um país mais livre, mais justo e mais fraterno”: poderão tais palavras simples causar renovado incómodo a quem não lida bem com a matriz genética da nossa democracia? Parece que sim, o que dá mais significado ainda ao exercício de memória e de afirmação de princípios em que o José João Abrantes transformou ontem a sua jubilação, fazendo-a o primeiro dia do resto da sua vida. Temos ainda muito caminho pela frente e pessoas como o José João são cada vez mais imprescindíveis. Admiro-o muito. Tenho por ele um enorme carinho e um gosto orgulhoso em poder considerá-lo um amigo.
Artigo publicado na página de José Soeiro no Facebook a 5 de junho de 2025
