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Levantar a cabeça

É como uma droga, uma droga dura. Aliena, divide, desgasta e faz muito mal à saúde. Circula entre nós a rodos, invisível. Trabalha silenciosamente. É o produtivismo mórbido que corre solto em tantos locais de trabalho, contaminando-nos.

É como uma droga, uma droga dura. Aliena, divide, desgasta e faz muito mal à saúde. Circula entre nós a rodos, invisível. Trabalha silenciosamente. E só quando alguma das suas vítimas atinge o ponto limite os seus pares reparam. Sem entender de onde vem o chilique de quem não aguenta mais, comentamos, secos, mas não tão surpresos: “Olha, passou-se.”

É o produtivismo mórbido que corre solto em tantos locais de trabalho, contaminando-nos.

A época é propensa á sua irrupção, com o aproximar do Outono, o fim das férias, o galgar da inflação, o regresso às aulas. Mães trabalhadoras faltam ao trabalho para comparecer nas reuniões de pais ― a lei concede-lhes esse direito, mas, muitas vezes, chefias e colegas olham-nas de lado. O mesmo quando se atrasam por ter de levar as crianças à escola ou a uma consulta. Após o recesso, voltam as doenças profissionais latentes: aquela tendinite que impede um colega de desempenhar determinada tarefas, aquele burnout que faz com que outra “esteja outra vez de baixa”. Vida e desgaste, normais e inevitáveis, emergem como empecilhos no quotidiano de quem trabalha.

Findo o verão, o trabalho intensifica-se. A produção acelera, em vista já do Natal, e a clientela regressa em força, após o deserto de agosto. Há mais circulação, pressionando quem conduz transportes, limpa ruas, sustenta hospitais e escolas. Este peso extra faz com que alguns se tornem menos produtivos e sobrecarrega de tarefas os restantes. O trabalho que não faz um colega de baixa sobra para outrem; a lentidão de uma colega doente tem de ser compensada por esforço extra de outra.

E assim começa a fervilhar nas veias o veneno do produtivismo. Sobrecarregados pelas tarefas não feitas pela mãe que faltou para cuidar da prole ou pelo colega (um pouco mais velho) que é lento de mais, perdemos as defesas contra este vírus: “Se não consegue trabalhar, porque é que não mete baixa?”. “Se está sempre de baixa, porque é que não a despedem?”. “Se eu tenho de fazer 20, porque é que ele só faz 10?”.

O nosso próprio cansaço e frustração revertem em rancor e em raiva; e não poucas vezes dirigem-se ao elo mais fraco ― quem já está doente e cansado, quem acumula mais anos de exploração nos músculos e nos nervos. Não nos ocorre que dentro de pouco seremos nós vítimas dessas maleitas e alvo desses rancores ― não nos ocorre que o outro somos nós.

O combustível desta doença é o produtivismo: o ritmo alucinante, que tensiona os locais de trabalho e as nossas vidas, penetra nas mentes como um desígnio absoluto

O combustível desta doença é o produtivismo: o ritmo alucinante, que tensiona os locais de trabalho e as nossas vidas, penetra nas mentes como um desígnio absoluto. Por vezes quem o instala são as chefias, através da pressão e do assédio. Mas tantas outras, nem é preciso tanto: as tarefas que se acumulam, as metas da empresa (compensadas por parcos prémios caso cumpridas), a pressão dos clientes…

É preciso fazer, fazer, fazer. Cumprir, cumprir, cumprir. Produzir!

Só os mais fortes aguentam. Quem não consegue, que não atrapalhe: que meta baixa, que se despeça, que desapareça! Não nos ocorre que o mal está no ritmo excessivo de trabalho ou no quadro de pessoal escaço onde a empresa não investe.

É como uma droga dura. Corre-nos nas veias, já nem damos por ela, mas estamos viciados: o trabalho tem de ser feito, não pode ser questionado. A vida pode parar, a empresa não. Como as drogas químicas, causa doença física e social. Os laços da comunidade quebram, a empatia desfaz-se. O pobre vira o polícia do pobre.

Como nas drogas duras, o culpado é invisível. Vemos o adito que nos enerva; o familiar rancoroso que vira as costas aos seus; o passador rasteiro, peça mínima da engrenagem; o polícia insensível que persegue as vítimas e não os culpados. Mas o traficante, que enche os bolsos ao espalhar este veneno, não vemos. Está longe, não tem rosto, veste bem e não trabalha. É acionista, banqueiro, CEO, CFO, manager, entrepreneur. Na sua ausência, culpamos a vítima do lado, aceitamos o mal que nos esmaga ― a exploração incessante, o salário minguante, as tarefas sobrantes ― como inquestionável. Culpamos o próximo pelo peso da exploração que nos exaura, enquanto ele ou ela se culpabiliza a si mesmo por não fazer mais, afundando-se mais e mais na doença e no esgotamento.

Viciaram-nos em trabalhar contra nós mesmos

Isto é consciência de classe. Mas não da nossa, de quem trabalha: são os interesses de quem nos domina e explora que assumimos como nossos. Viciaram-nos em trabalhar contra nós mesmos, atropelando no caminho quem, ao nosso lado, pode lutar por uma vida melhor ― por salários, por descanso, por estabilidade e futuro. Por nós.

Contudo, não é a colega do lado quem nos oprime, ainda que a vejamos todos os dias. São estes senhores invisíveis, donos disto tudo que nos inoculam o veneno produtivista em proveito próprio. Se, ainda que cansados, levantarmos a cabeça, vê-los-emos, descansados, a curtir o lucro da nossa exaustão.

Sobre o/a autor(a)

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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