A lei de Murphy é a fezada liberal

porFrancisco Louçã

25 de março 2023 - 19:19
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A nova corrida ao ouro são os criptoativos ou as suas múltiplas ramificações, os NFT no mercado da arte, os espaços “imobiliários” ou “comerciais” no metaverso, os negócios de credulice nas redes.

No verão de 2007, David Viniar, um gestor do Goldman Sachs, que tinha sido seu vice-presidente executivo e diretor financeiro durante 14 anos, notou algo estranho nos mercados financeiros. Veterano de crises, nunca tinha visto nada parecido, um dos fundos especulativos do banco perdeu 27% num ápice e isso custou dois mil milhões de dólares para o salvar. “Passámos dias seguidos a ver coisas com 25 desvios-padrão”, disse ele depois. Essas “coisas” eram movimentos de preços que não podiam ser descritos pelos modelos de estimação probabilística que se baseiam na presunção de que a maior parte das variações se situam perto da média e que são raros ou impossíveis os acontecimentos extremos num mercado eficiente. Os analistas financeiros usam esses modelos, os seus gurus economistas garantem-lhes que é a lei da natureza e, por isso, o caso era incompreensível. De facto, a probabilidade de acontecimentos tão raros que tenham 25 desvios-padrão é a mesma que a de ganhar 42 vezes seguidas a lotaria, mas o entusiasmo com a subida das cotações manteve a ilusão e o mercado continuou entusiasmado por mais um ano. A recessão que se seguiu a esta bolha especulativa foi a primeira desde a 2ª Guerra Mundial que provocou a redução em termos absolutos do PIB mundial.

A lição da crise

Deve-se notar que a tal “coisa” impossível era estritamente o resultado do regular funcionamento do mercado. Os incentivos funcionaram como deviam: os agentes imobiliários vendiam casas o mais caro possível a famílias pobres e recebiam imediatamente a comissão descontada sobre o crédito; os bancos emprestavam com uma hipoteca que, se fosse executada, sempre permitiria vender a casa por preço superior; os créditos foram titularizados e vendidos ao longo de uma cadeia de agências financeiras, na suposição de que poderiam sempre ser revendidos com lucro. Enquanto o preço da habitação subisse, o sistema prosperava e distribuía um manancial. No entanto, quando começou a descer dado o número de falências daquelas famílias, o sistema financeiro teve que registar perdas em catadupa e começou o pânico, os mercados de crédito interbancário congelaram e os mesmos que tinham usado o esquema e este sucesso do mercado foram os primeiros a bater à porta dos governos, de mão estendida.

É mesmo assim, no país mais poderoso do mundo os conservadores jogam ao quanto pior melhor, Murphy é o seu profeta

Lição aprendida e, como seria de esperar, voltamos agora ao mesmo, a nova corrida ao ouro são os criptoativos ou as suas múltiplas ramificações, os NFT no mercado da arte, os espaços “imobiliários” ou “comerciais” no metaverso, os negócios de credulice nas redes, as criptomoedas que valeriam o céu e outros produtos misteriosos que valem a fé. Este mundo empresarial puxado a adrenalina passou a ser uma gigantesca startup que vende ilusões e, se algum dia se usou o termo “capital fictício”, nem se poderia imaginar onde chegaria esta espécie de fantasia new age em que vivemos. Até esta semana, quando o fim do Silicon Valley Bank, com uma corrida aos depósitos e a segunda maior falência da história dos Estados Unidos, e de dois outros bancos, foi o sinal de que uma bolha acabará sempre. E termina exatamente assim, ainda haverá mais.

O mercado resolve

Quando da crise anterior, a de 2008, alguns liberais opuseram-se a que houvesse qualquer intervenção pública para resgatar os bancos em dificuldades. John Cochrane, então professor em Chicago, destacou-se por garantir que, se se deixasse falir as empresas em dificuldades, o mercado recuperaria em poucas semanas. Foi a solução aplicada pela administração Hoover em 1929 e a bolsa norte-americana só recuperou 25 anos depois. Mas a resposta de Cochrane é agora diferente, diz ele que se trata de uma crise da regulação. O ajuste de contas é evidente: depois da crise financeira de 2008 foi aprovado um novo sistema regulatório que, sendo deficiente, obriga as agências financeiras a regras mais estritas (e Cochrane e outros liberais opuseram-se-lhe). Trump conseguiu anular parte dessas regras para os bancos regionais, criando aí um foco de incerteza agravada (o valor da capitalização de um dos maiores, o First Republic, caiu 80% esta semana), nada que impeça os republicanos de aproveitarem esta crise para relançar a ofensiva pelo fim dessas regras.

O formato desta batalha é uma curiosa revelação do perfil do liberalismo-conservador que hoje predomina nas direitas mundiais. Diz DeSantis, o rival de Trump, e dizem os comentadores da Fox News, pelos quais se pode medir a temperatura do trumpismo, que a falência daqueles bancos é o resultado da “cultura woke”, o termo usado para catalogar as políticas que promovem a diversidade no emprego. Como aqueles bancos anunciaram linhas de crédito para políticas de sustentabilidade ambiental ou apoiaram jornadas do orgulho gay, aí temos o dedo apontado pelos republicanos: a falência é a culpa das lésbicas, dizem os mais atrevidos — e na cultura de direita dos Estados Unidos isto ainda é uma posição moderada. Pode-se perguntar qual é a relação entre esta cruzada cultural obscurantista e a resposta ao risco financeiro, ou de que serviria uma resposta que criasse uma qualquer regra cultural discriminatória para apontar novas vítimas e, ao mesmo tempo, deixasse o mercado tratar das falências dos bancos. O simples facto de se discutir esta paranoia já diz muito da irracionalidade destes senhores. É mesmo assim, no país mais poderoso do mundo os conservadores jogam ao quanto pior melhor, Murphy é o seu profeta.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 17 de março de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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