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Lei da IVG não está a ser cumprida

O Bloco de Esquerda vai propor uma auditoria às unidades do SNS para fazer um levantamento da aplicação da lei da Interrupção Voluntária da Gravidez. E, no imediato, quer que a Saúde 24 garanta o encaminhamento da mulher para a consulta e o apoio em todo o circuito.

Uma investigação do Diário de Notícias sobre o acesso ao aborto no Serviço Nacional de Saúde só nos pode indignar.

Uma funcionária da unidade de obstetrícia de Vila Franca de Xira que despacha uma mulher dizendo-lhe "mande um e-mail a reclamar”. Uma administrativa que, no Hospital da Guarda, responde à pergunta sobre a IVG desta forma: "Aqui não, este é um hospital amigo dos bebés".

Uma resposta que mais parece uma lotaria: "Onde está a senhora? Guarda? Pode experimentar Viseu, Coimbra, e deram-me conhecimento de que o hospital de Abrantes também está a fazer. É uma questão de experimentar."

Rita ligou para o hospital, de onde lhe disseram "ai aqui não vai fazer nada disso, não pense", que só tinham vaga para 18 de janeiro. Informada, Rita confrontou a funcionária com o prazo legal. A funcionária respondeu: "Ó minha senhora, que quer que lhe faça? Não quer? Marque para outro hospital."

Rita passou "dia e meio ao telefone", só conseguindo ser atendida por uma pessoa da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) que lhe disse que "os hospitais estão a usar o Covid para não cumprir os prazos".

Rita voltou então a ligar para Santarém, onde lhe responderam "Se está com pressa, marque diretamente para a clínica e pague".

No Hospital Garcia de Orta, Almada, o circuito imposto a quem quer fazer uma interrupção de gravidez é um labirinto de dificuldades, desmazelo e erros. A Carolina e Maria, de 25 e 27 anos, disseram que "é preciso esperar pelas sete semanas e meia, quando já há batimento cardíaco".

A edição de hoje traz a história de Camila, de 34 anos, 8 semanas de gestão que tenta falar com o Hospital Santa Maria e depara-se com uma parede.

O problema é simples: a lei da interrupção voluntária da gravidez que estabelece que o aborto não é punível até às 10 semanas de gravidez, não está a ser cumprida. A lei que obriga o SNS que se organize para cumprir este direito das mulheres não está a ser cumprida. Os prazos que a lei prevê não estão a ser cumpridos.

Uma mulher que queira abortar pode ser obrigada a esperar semanas e a viajar centenas de quilómetros, desprezada, recriminada, exposta publicamente. Não sabe onde pode encontrar informação e quando finalmente consegue que lhe atendam o telefone tem de contar vezes sem conta a sua história, submetendo-se vezes sem conta novos juízos de valor.

E tudo para exercer um direito que é seu, que a lei diz que é seu. Muitas mulheres esperam muito para lá do limite razoável do prazo legal, mulheres que são empurradas para o privado porque não conseguem no SNS abortar dentro das 10 semanas e sabe-se lá quantas mulheres não foram forçadas à gravidez ou à clandestinidade porque a falta de resposta, o jogo do empurra faz passar as 10 semanas.

O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, primeiro disse desconhecer a situação das dificuldades de acesso à interrupção voluntária da gravidez. Depois admitiu que existem casos pontuais, mas ainda assim, afirma: "Os nossos resultados são excelentes, a lei está a ser globalmente cumprida e temos belíssimos indicadores sobre cumprimento de prazos”. Há apenas um problema é que estas declrações não correspondem à verdade.

A médica Teresa Bombas, da Sociedade Portuguesa de Contraceção (SPDC), revelou que a verdadeira situação é conhecida da tutela, a verdadeira situação é aquela relatada pelo Diário de Notícias, e acrescentou que por diversas vezes as autoridades portuguesas foram alertadas.

O Bloco de Esquerda fez um levantamento em 2018, concluiu e fez saber que tinha concluido que grande parte dos ACES não disponibiliza consulta prévia; que há um labirinto de referenciações, que a resposta não existe em muitos hospitais públicos.

Dessa consulta resultou um projeto de resolução aprovado por larguíssima maioria nesta casa e continua por cumprir. Nada mudou, aqui chegadas é preciso dizer que esta situação é inaceitável. Estão aqui muitas mulheres que deram anos de luta da sua vida pelo direito ao aborto, pelo direito à saúde, pelo direito a decidir, pelo fim da perseguição social e judicial das mulheres, pelo fim de interrogatórios e de exames ginecológicos forçados, pelo fim de processos criminais, de condenações, de abortos clandestinos em vãos de escada, pelo fim de viagens ao estrangeiro e pelo fim de mortes de mulheres por abortos inseguros. Não esquecemos que até 2008 o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal.

Manuel Pizarro garante que tudo vai ser rápido, coisa pouca, em poucas semanas estará tudo resolvido. Mas o Diretor Executivo do SNS parece ter uma perspetiva menos otimista e fala numa “mudança cultural para humanizar cuidados”. Nunca se viu uma mudança cultural em tão poucas semanas, mas cá estaremos para testemunhá-la.

Entretanto preferimos descer à terra, o Bloco vai propor uma auditoria às unidades do SNS para fazer um levantamento da aplicação da lei, os motivos e os responsáveis dos casos em que a lei não foi aplicada. E, no imediato, que a Saúde 24 garanta o encaminhamento da mulher para a consulta e o apoio em todo o circuito.

Porque aqui chegadas, no final desta história de irresponsabilidade governativa, quem continua a sofrer são as mulheres. Depois de um labirinto de contactos, entre Santa Maria, Beatriz Ângelo, Caldas da Rainha e Cascais, entre chamadas não atendidas e listas de espera, Camila viu por fim aproximar-se o limite legal das nove semanas. A solução que lhe deram foi pagar 800 euros na clínica dos arcos.

Por causa da reportagem do Diário de Notícias, o Hospital Santa Maria assumiu o erro no caso de Camila e aceitou pagar a conta da clínica privada. A pergunta que deixamos é quantas Camilas ficaram caladas, quantas Camilas foram esquecidas.

Declaração do Bloco de Esquerda na Assembleia da República a 16 de fevereiro de 2023

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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