As eleições presidenciais, com a campanha em curso, nos Estados Unidos da América têm exacerbado todo o discurso de combate político. A extrema-direita, corporizada por Trump/Vance, radicaliza ideologicamente para completar a radicalização política.
Trump promete a conclusão do Muro com o México e a maior deportação de estrangeiros da história. Trump assegura que termina, a nível federal, com o aborto legal e com contracetivos. Trump é fiel ao complexo militar, da arma de rua a qualquer arma estratégica, em nome das tradições dos colonizadores do território. Trump entrega a Ucrânia a Putin e quer impor a vassalagem da China, a NATO que se oriente no meio disso. Trump quer desmantelar os raquíticos apoios sociais na saúde e na assistência social ao mesmo tempo que quer desagravar mesmo os ridículos impostos aos super-ricos. Trump nega o aquecimento global e dá livre curso ao extrativismo. O mesmo Trump que foi o responsável do ataque ao Capitólio, numa tentativa de provocar um golpe de estado, pretende asfixiar ainda mais as liberdades democráticas e sindicais.
O confronto ideológico, que se expressa nas acusações de que os candidatos Democratas são marxistas e wokistas, é o topo de toda essa narrativa neofascista.
Do seu lado, Kamala defende direitos fundamentais dos cidadãos, direitos das mulheres, a incipiente segurança social e saúde públicas, faz uma campanha em nome da classe média à qual promete habitação e menos impostos, pensa tabelar alguns preços de bens essenciais, defende a comunidade inter-racial. Defende leis mais restritivas para a imigração contidas na proposta de Biden que não vingou no Congresso. Contra Trump, defende a NATO na expansão da liderança mundial dos EUA e a presente política no Médio Oriente.
O ataque ideológico dos Democratas a Trump é bem mais brando do que os ataques do ex-Presidente. Segundo Harris e Walz, Trump teria uma "ideologia esquisita", seria um aspirante a autocrata, um extravagante psicopata, um criminoso a contas com a Justiça. Trump levou os Republicanos a abandonar os "valores conservadores" em nome de uma agenda para os bilionários, segundo a linha da convenção de Chicago. Toda a resposta ideológica dos Democratas é personalizada no "ticket" dos candidatos, como se fosse possível ignorar a fascistização do Partido Republicano e o real quadrante ideológico do seu émulo.
Mas será que, apesar da timidez ideológica em reconhecer que a extrema direita já engoliu meia América e pode voltar à Casa Branca, poder-se-á entender que o programa dos democratas é radical?
Bernie Sanders rejeitou essa classificação e bem. A ideia, muito europeia, de que Kamala não é radical mas de centro-esquerda, arrasta algum humor. Se Macron, apesar de tudo, tem políticas sociais bem mais à esquerda que os Democratas dos EUA e não é outra coisa que um liberal de direita, o enigma parece difícil de resolver. Durante muito tempo os media tentaram inculcar na informação política de que os liberais americanos seriam à esquerda e os liberais europeus à direita. Circunstancialmente, os liberais americanos no Partido Democrata, onde se abrigam alguns social-democratas, podem ser "esquerda" em relação aos Republicanos, como o PSD pode ser "esquerda" em relação ao Chega, mas os liberais são de direita em qualquer geografia. Encontram-se na defesa do capitalismo e do dualismo social, mesmo que alguns dos seus setores possam ser antifascistas.
Creio que isto desfaz com argumentos simples a ausência de qualquer base para apreciar Kamala de marxista, que em qualquer interpretação é um ideário que visa o socialismo, "coisa" completamente hostil ao Partido Democrata. Perguntar-se-á: e a acusação de wokismo, procede?
Kamala Harris disse a determinado momento que toda a gente deveria ser Woke (desperta) para contrariar o racismo. Essa simpatia de Kamala desperta a ira de Trump. O insulto de Trump visa repudiar a igualdade cidadã, a igualdade de género, o respeito pela autodeterminação de género, ou seja, tudo elementos próprios de uma democracia liberal moderna. Nada como apontar ao movimento chamado “Woke” pelos seus detratores, o qual nos EUA tem ganho destaque, sobretudo, no combate ao racismo sistémico e na denúncia do supremacismo branco.
Para nós, Esquerda socialista, não é indiferente que os fascistas ataquem democratas e liberais como se estivessem a atacar o campo da esquerda. Estes ganham natural solidariedade em termos democráticos. Contudo, dirão imediatamente que o marxismo da “camarada” Kamala é usado para assustar eleitorado moderado e arrastar todos os conservadores que não se reflitam ainda no extremismo de Trump. Seja como for, que a extrema direita ponha a esquerda como alvo mais distante só mostra que o temor dos neofascistas se dirige para aqueles que consequentemente podem extirpar as raízes dessa opressão autoritária sobre os povos. Não é suficiente eliminar a base económica do fascismo, há fatores culturais e sociológicos a ter em conta, mas sem isso a progressão da extrema direita não tem fim. Curiosamente, Marx é personagem na política americana a perfazer o primeiro quartel do século XXI. O espetro ainda reina.