Justiça e paz

porTiago Gillot

22 de março 2010 - 0:00
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Respondendo a um apelo da família e amigos, centenas de pessoas estiveram este domingo em frente à estação de comboios de Benfica, em Lisboa, para homenagear Nuno Rodrigues. MC Snake, o rapper de Chelas morto a tiro por um agente da PSP, é mais um trágico exemplo duma cultura de abuso e arbitrariedade que ainda domina a corporação policial. Um exemplo que teve uma resposta exemplar: nesta homenagem exigiu-se justiça e, sobretudo, paz.

Foi uma homenagem emocionante. Um minuto de silêncio, balões brancos com mensagens foram lançados, duas pombas foram soltas, muitas t-shirts brancas entre a multidão. Além dos familiares e amigos, estiveram pessoas que carregam diariamente um quotidiano de exclusão, mas também gente solidária e que não aceita a banalização da violência e da morte.

Esta demonstração pública foi mais do que uma resposta ao ódio - que, apesar da brutalidade dos factos, não deixou de se ver, aqui e ali, quase sempre oportunista e cobarde, no anonimato de alguns comentários às várias notícias sobre o caso. À família e amigos junta-se muita gente para dizer que a violência tem que parar, mas também que não podem ficar dúvidas sobre as circunstâncias e consequências deste caso.

É preciso que sejam reveladas com pormenor as circunstâncias que determinaram o desaparecimento do Nuno. É esta a mensagem da família e dos amigos: fazer justiça é muito diferente de querer vingança. Só assim se garante o fim do clima de impunidade e se podem evitar tragédias futuras. Ou corremos o risco de normalizar a pena de morte, sem direito a julgamento, por delito de desobediência (admitindo que neste caso ele ocorreu).

O irmão do Nuno, Jorge Rodrigues, agradeceu a "onda de solidariedade" e falou na "mensagem de paz" que representou o encontro. Mas não deixou de lamentar, em declarações à imprensa, que ele e a família estejam a ser "tratados como lixo" pelo Estado e pelas suas várias instituições, que continuam a ignorar o sofrimento e as necessidades destas pessoas, uma semana depois da tragédia se ter abatido sobre as suas vidas.

É inaceitável que nenhum apoio psicológico tenha sido dispensado à família do Nuno, apesar do agente policial que disparou a bala fatal esteja (e bem) a ser acompanhado. É inquietante constatar que, perante a fragilidade da família, sabendo-se que o Nuno deixa uma filha de apenas dois anos, a Segurança Social não tenha ainda feito qualquer diligência para conhecer a situação concreta e acudir a eventuais necessidades. Mas ainda mais escandaloso e revoltante é saber que nenhuma figura do governo ou que represente o Estado contactou a família de alguém que, já lá vai uma semana, morreu porque uma bala disparada por um polícia atravessou o seu corpo. Nem uma palavra. Um silêncio brutal, que só pode aumentar a dor e a injustiça.

A morte do Nuno revela, a quem o quiser ver, que nenhum discurso securitário ou apenas pretensamente pragmático resiste à dureza dos factos. O preconceito e a cultura da obsessão não protegem ninguém e apenas produzem tragédias. Todos somos vítimas da consolidação da ideologia que espalha o medo e este nervosismo arrogante, mas é preciso dizer sem hesitações que há gente que é vítima demasiadas vezes. Por isso impressiona ainda mais a força que leva esta família a optar pela serenidade e sensatez, perante tanta violência. É uma força pacífica, mas que não aceita que fique tudo na mesma. Não pode ficar. Pelo Nuno e por todos nós.

Tiago Gillot
Sobre o/a autor(a)

Tiago Gillot

Ativista da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis
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