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Joe no País das Maravilhas

O pior é que, aparentemente, no país de Berardo é possível acumular uma fortuna em fundações que não pagam um cêntimo de impostos sobre os lucros mas recusar pagar o que deve.

Estão a esgotar-se as imagens e referências cinematográficas para falar do caso da semana. Uma das mais óbvias é a de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, uma novela gótica em que o sr. comendador José Berardo pede emprestados quase mil milhões de euros a três bancos, o banco público e outros dois que não o eram mas que, anos mais tarde, recorreram aos cofres do Estado como se o fossem. Dos buracos desses bancos rezará a história da nossa crise e da austeridade que se lhe seguiu. Mas o que agora interessa para o nosso enredo é que, num desses negócios, o sr. comendador José Berardo consegue convencer a Caixa Geral de Depósitos a emprestar-lhe (ou alguém o convence a ele a pedir) 300 milhões para comprar ações de outro banco, o BCP, dando como garantia essas mesmas ações.

Se alguém achou que o negócio era arriscado na altura? Bom… houve umas vozes do Bloco de Esquerda que alertaram para a economia de casino que fazia fortunas a uma rapidez estrondosa, mas disseram-lhes que andavam armados em xerifes do capital e que tinham preconceitos ideológicos contra banqueiros. A sra. comendadora Celeste Cardona e o restante Comité Alargado de Crédito da CGD, muito povoado pelo PS, disseram que estava tudo bem e até o sr. comentador Marcelo Rebelo de Sousa elogiou Berardo, um homem “tão importante durante a crise no BCP”.

O problema é que, quando chegou a altura de pagar, o dinheiro não apareceu, e as ações que a Caixa tinha recebido como garantia não valiam mais do que as peúgas do sr. comendador. É então que o sr. comendador José Berardo sofre uma mutação. Passa a ser Joe Berardo, um pobre madeirense na diáspora que afirma nunca ter contraído tal dívida e muito menos ter dinheiro para a pagar, já que apenas possui uma garagem no Funchal, coisa que não dá nem para a papelada da penhora.

Sem nada em seu nome que possa ser penhorado, o sr. comendador dá festas na Quinta da Bacalhôa, deixando uma coleção de arte no valor de 350 milhões de euros, de uma fundação que tem o seu nome (da qual é fundador, cofundador e presidente de vários órgãos), à guarda do Estado, que, apesar de pagar por ela, não pode comprá-la sem a autorização de… Joe Berardo.

Berardo está a brincar às escondidas connosco como as crianças que se escondem atrás das próprias mãos e gritam “agora não me consegues ver”. E o pior é que, aparentemente, no país dele é possível acumular uma fortuna em fundações que não pagam um cêntimo de impostos sobre os lucros mas recusar pagar o que deve. A sua ida à comissão de inquérito mostrou até à insanidade que o que para qualquer outro cidadão seria a desgraça pública e privada, para Joe é um passeio no País das Maravilhas.

Claro que a indignação é popular e nacional. O país em que Joe Berardo goza de e com a impunidade do seu privilégio de elite é o mesmo em que já penhoraram salário e casa a desgraçados que se esqueceram de pagar 70 cêntimos por passarem num pórtico de autoestrada. Quem já apanhou com elas sabe como é difícil livrar-se dessas dívidas. O fisco é cruel na hora de cobrar. Pior, só os bancos.

No país real, as pessoas têm más experiências com dívidas a bancos. Alguém que fique desempregado está tramado, mas aos poderosos deste país basta fazer um ar idiota e dizer que não se lembram de nada, nunca viram o dinheiro, nem sabem de que cor eram as notas, e tudo lhes é perdoado.

Sim, a repulsa popular em relação aos banqueiros deste país é legítima e está longe de ser um preconceito ideológico. O que toda a gente pergunta e ninguém sabe responder é como é que foi possível.

A culpa é sempre de todos e a culpa nunca é de ninguém, o Banco de Portugal olha para o lado, e assim se vai contando a história do gangsterismo financeiro deste país. Uma elite que vive às custas de todos nós porque não paga os impostos que deve, faz as burlas que quer e ainda fica com os negócios patrocinados pelos Governos. Uma mão sempre lavou a outra.

Por isso, e embora seja simbólico, não deixa de ser pão e circo andar a discutir se o banqueiro merece ou não que lhe retirem a comenda. Se o CDS estivesse mais preocupado em discutir o que andou a fazer a sua militante Celeste Cardona na administração da Caixa Geral de Depósitos, Nuno Melo já teria feito alguma coisa pelo país. É que, até agora, só vimos do CDS o mesmo apoio que PSD e PS sempre deram à impunidade destes poderosos, à porta giratória entre o público e o privado e ao sistema de offshores que, no final de contas, deve ser a verdadeira garagem onde Joe Berardo enfiou o dinheiro que nos deve a todos.

Artigo publicado no jornal “I” a 16 de maio de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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