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Já não se podem reescrever os livros?

A questão aqui é a da reescrita de um livro, não pelo autor, que está morto (se não estivesse, seria diferente), mas por quem pretende polir ideologicamente o texto. Não pretendo aqui repisar os justos argumentos que justificam porque me oponho a esta tolice.

São assaz surpreendentes os motivos pelos quais discutimos livros, escrita e leitura. Desta feita, foi saber-se que a editora inglesa de Roald Dahl, autor de A Fábrica de Chocolates, a Puffin, irá reescrever partes dos seus livros para torná-los, alegadamente, mais inclusivos. Onde se lê «gordo», passará a estar «enorme»; uma das personagens perderá o adjetivo «feia» e os irritantes oompa loompas deixarão de ser «homens pequenos», para virarem «pessoas pequenas». Não é a primeira iniciativa do género: há poucos anos, nos EUA, foram reeditadas As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, extirpadas da expressão racista nigger e parece que os livros de James Bond, de Ian Flemming, passarão por um corta-e-cose semelhante.

Apesar de nada disto dizer respeito a edições portuguesas, o debate já cá chegou ― e ainda bem. Já foi sobejamente demonstrado o absurdo da coisa. Este tipo de reescrita, da perspetiva editorial, é pouco profissional; do ponto de vista pedagógico, contraproducente; como política emancipatória, inócua e só pode ter resultados positivos pela régua comercial (o que já poderá explicar muita coisa). E do ponto de vista literário… bem, aí a questão é mais complexa, mas tampouco é o que está em causa. A questão aqui é a da reescrita de um livro, não pelo autor, que está morto (se não estivesse, seria diferente), mas por quem pretende polir ideologicamente o texto. Não pretendo aqui repisar os justos argumentos que justificam porque me oponho a esta tolice.

O que pode ser uma política editorial crítica, que ajude leitores e sociedade a pensar a literatura e os livros, superando a reprodução de iniquidades sem cair no apagamento maniqueísta e paternalista?

Quero, antes, questionar outros aspetos. Antes de mais, perguntar: mas então deve a reprodução de injúrias, ofensas e perspetivas discriminatórias correr solta? São os livros e a liberdade de expressão tão intocáveis que devamos dar ao prelo tudo, sem reflexão nem critério? O que pode ser uma política editorial crítica, que ajude leitores e sociedade a pensar a literatura e os livros, superando a reprodução de iniquidades sem cair no apagamento maniqueísta e paternalista?

Editar o horror

Peguemos no mais bicudo dos casos: o Mein Kampf de Adolf Hilter. Foi um dos grandes best sellers do seu tempo. Publicado em 1925, venderá 12,5 milhões de exemplares até 45. Derrotada a Alemanha, a cúpula militar estado-unidense (que ao contrário do que advogam hoje alguns, sabia bem que livros não são «só palavras» inofensivas) assume a decisão editorial mais badalada da História: o que fazer com o Mein Kampf? Como o ditador era registado em Munique, os direitos de publicação do seu manifesto foram entregues ao Estado da Baviera. Este decidiu impedir a sua republicação. Mas 70 anos depois da morte do autor, como em todas as obras, os direitos passam a ser públicos.

A 1 de Janeiro de 2016, os direitos de publicação do Mein Kampf entraram em domínio público, pelo que qualquer editora poderia republicar o manifesto nazi. O debate foi aceso. Contra os receios de muitos, prevaleceu a opinião de académicos a favor da publicação do livro por iniciativa do Governo. O resultado foi uma edição crítica que acrescentou 3.700 notas ao texto original, organizada pelo Instituto História Contemporânea de Munique, e que fez do manifesto de Hitler uma arma de arremesso antifascista (um tijolo com 2.000 páginas!). Segundo o The Guardian, o resultado é uma edição que consegue «um desmantelamento sistemático das suas [de Hitler] teorias e mentiras manipuladoras»1. Um editorial do jornal britânico especialmente dedicado ao tema conclui: «Expor, não esconder, é a melhor forma de neutralizar o pensamento conspiratório e o fascínio sinistro que pode ser despertado por um objeto proibido.»2

(Valeria a pena falar das edições de Mein Kampf feitas em Portugal aquando da sua entrada em domínio público. A primeira, da E-Primatur, sem qualquer esforço crítico real, não disfarça o mero objetivo comercial; a segunda, não lhe faltando notas e prefácios, parece preocupada, sobretudo, em equiparar nazismo e comunismo, com várias gafes históricas pelo meio bem dentro da linha da Guerra e Paz, que tenta fazer da luta contra o «politicamente correto» barricada conservadora e catapulta comercial.)

O exemplo do manifesto nazi é o mais extremo, portanto o mais fácil. A maior parte dos temas e livros sensíveis ― chamemos-lhes assim ― apresenta desafios maiores, por serem menos óbvios os seus danos. Consentimento, de Vanessa Springora, publicado entre nós pela Alfaguara, é exemplo de que estamos perante uma longa escala de cinzentos mais do que de um confortável debate a preto e branco

Gabriel Matzneff é um escritor francês com quase 90 anos. Em 2013 venceu o Prémio Renaudot, um dos mais importantes da literatura francesa. É pedófilo assumido. Publicou diários íntimos em que relatava relações com crianças de 13 anos. Vanessa Springora, editora e autora, foi um dos seus alvos quando tinha 14 anos e ele 50. Consentimento é um livro, assumidamente autobiográfico, sobre essa experiência. Publicado na sequência do #Metoo, a obra despoletou um terramoto no mundo literário e, hipocritamente, a editora de Matzneff retirou os livros do mercado. Já Springora ― sobrevivente, leitora, autora, editora ― fez outra proposta num caso em que, à primeira vista, o cancelamento facilmente se justificaria:

Como sou editora e não sou pela censura acho necessário que estes livros [de Matzneff] reapareçam nas livrarias. Mas com um aviso ao leitor, um prefácio que contextualize e que explique a polémica que se gerou e porque é que é necessário publicá-los para mostrar como a sociedade evoluiu. Que explique que num determinado momento tolerávamos certos escritos e opiniões intoleráveis, e que hoje a sociedade não as tolera mais. 3

Eis dois exemplos de como o debate não é entre censura e liberdade absoluta, entre a pureza intocável do texto e a malvadez da reescrita. É antes sobre quais os caminhos mais eficazes para uma política cultural e de edição emancipatória e crítica, que dificilmente conviverá bem com idealizações a-históricas, seja para um lado, seja para outro, e que assuma que, sim, as palavras contam.

Talvez, tendo isto assente, possamos virar o bico ao prego e pensar porque são estes casos, apesar de tudo parcos e que nada têm a ver com censura ― esta implica coerção Estatal, violência física ou mecanismos análogos e a banalização do termo relativiza-a ― que dominam o debate sobre a dita guerra cultural. E não, por exemplo, a sanha censória da direita trumpista nos EUA, que tem levado ao banimento de milhares de livros com temáticas emancipatórias ou a perigosa reprodução da ideologia racista e colonial nos manuais escolares do nosso país. No tocante a livros e liberdade, são temas mais prementes.

Ou será que já deixámos que o conservadorismo nos comande o debate?

Notas:

1«The Guardian view on Mein Kampf: a good new edition of a very bad old book». The Guardian, https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/jan/12/the-guardian-view-on-mein-kampf-a-good-new-edition-of-a-very-bad-old-book );

2Idem, ibidem;

Sobre o/a autor(a)

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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