Os números falam por si. Em 2023, só 9% das mulheres açorianas que recorreram à interrupção voluntária da gravidez (IVG) conseguiram uma resposta do Serviço Nacional de Saúde no arquipélago. No Alentejo, foram 27%. Nestas regiões, como noutras, não há argumento que desminta o facto: o acesso ao aborto não está a ser garantido.
Segundo a Entidade Reguladora da Saúde, além destas disparidades regionais, os procedimentos são garantidos de forma inconsistente, com incumprimento dos prazos legais e ausência de informação organizada sobre a objeção de consciência. As dificuldades no acesso à IVG explicam o recurso ao privado e o regresso às clínicas de fronteira, em Vigo e em Badajoz, como denunciado pela a organização da campanha europeia “My voice is my choice: pelo aborto seguro e acessível”.
Ao recusar garantir este direito legal, Portugal põe em risco o direito à saúde, à privacidade e à não-discriminação das mulheres – assim é considerado pela Organização Mundial de Saúde e pelos tratados das Nações Unidas. E é fácil de compreender que esta também é, como sempre foi, uma questão de classe.
Sim, é verdade que esta é mais uma consequência do enfraquecimento (deliberado) do SNS. É por isso que as restrições financeiras que lhe foram impostas são, também, uma vitória para o conservadorismo. Mas não nos enganemos: estas dificuldades são, igualmente, resultado de procedimentos errados e anacrónicos, cuja persistência aconselha uma revisão cuidadosa da lei em quatro aspetos.
Primeiro, o período de reflexão obrigatório de três dias a partir da primeira consulta menoriza as mulheres, ao pressupor que não são capazes de uma decisão autónoma e responsável.
Segundo, a exigência de dois médicos durante o procedimento (98,9% das vezes realizado por via medicamentosa) constitui um entrave prático, mas também moral, à IVG.
Terceiro, o direito à objeção de consciência dos profissionais, exercido de forma desregulada e inconsistente, impede a organização das equipas de saúde e, objetivamente, é um instrumento de boicote à prestação do serviço.
E, em quarto lugar, todos estes entraves burocráticos consomem tempo que as mulheres não têm – e, por isso, a muitas é negada a IVG mesmo quando a consulta prévia aconteceu no tempo previsto. O prazo para o aborto em Portugal é de dez semanas, o mais curto da Europa, e o seu alargamento é recomendado quer pela Organização Mundial de Saúde quer pelo Colégio Português de Ginecologia e Obstetrícia.
Há pouco mais de dez anos, o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. É um dado chocante, mas não o suficiente para impressionar aqueles que, para justificar o seu conservadorismo, se apresentavam como defensores da vida. A lei da despenalização do aborto salvou milhares de mulheres da morte às mãos de um regime violento, que condenava e humilhava publicamente as sobreviventes. É uma conquista histórica de todas as mulheres e homens. Da gente de esquerda, mas também de direita, que se bateu pela vitória no referendo. Pelos movimentos feministas laicos, mas também dos católicos, que se bateram pelo respeito pelas mulheres.
Hoje, ter orgulho da lei do aborto, como do processo político que a permitiu, é dizer que chegou o tempo de a rever. Não respeitamos essa vitória tratando-a como um vetusto monumento. Respeitamo-la quando a celebramos como um direito vivo, com relevância prática. Como sempre, para não recuar é preciso avançar.
Artigo publicado no jornal Público a 7 de janeiro de 2025
