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Isto é uma grande guerra americana

Não havia estratégia nem força, só houve Trump e Giuliani a incentivarem a sua turba a correr para lado nenhum.

O ataque ao Capitólio foi uma lunática expressão de um Presidente que em todos os momentos fundamentais revelou ser um monumento de mesquinhez. Mas não terá sido sequer um articulado golpe de Estado, pois a milícia limitava-se, ao que se sabe, a esperar que Pence fizesse o que sabia impossível ou que uns pindéricos senadores tomassem de assalto a tribuna e substituíssem o voto popular. Não havia estratégia nem força, só houve Trump e Giuliani a incentivarem a sua turba a correr para lado nenhum. As implicações serão imensas, a divisão do Partido Republicano pode tornar-se irreversível. Ora, uma das consequências mais poderosas deste desastre é que explodiu uma outra guerra norte-americana, entre empresas tecnológicas que foram aliadas de Trump mas que agora fogem dele e outras que o apoiam. Essa guerra vai ter consequências graves.

Twitter e Facebook salvam imagem

O Twitter foi a empresa mais rápida na ‘destrumpificação’: suspendeu primeiro e anulou logo depois a conta do Presidente e limpou 70 mil contas da seita QAnon. O Facebook e o YouTube suspenderam a conta de Trump. Já tinham imposto avisos sobre falsidades ou determinado limites na partilha desses posts, mas foram agora mais longe. De facto, estão a lutar pela sua imagem, depois de quatro anos em que promoveram ou aceitaram e beneficiaram da verve trumpista.

No início desta semana, os gigantes tecnológicos deram outro passo, quando a Apple e a Google bloquearam a venda da app da rede social Parler e a Amazon lhe retirou o acesso aos seus servidores, colocando-a offline. Isso já tinha acontecido em 2018 com outra rede usada pela extrema-direita, a Grab, que conseguiu restabelecer-se usando outros servidores. Mas a Parler tem uma dimensão maior: tem sido das apps mais descarregadas e já ultrapassa 15 milhões de utilizadores (ainda assim, é minúscula face ao FB ou ao Twitter), dado que uma parte do trumpismo se tem descolado para lá. A milionária Rebekah Mercer, a dona da Cambridge Analytica que agora financia a Parler, tem os meios para proteger o projeto. Vai haver uma rede trumpista. Mas fica uma interrogação sobre quem e como se manda na internet.

Responsabilidade ou liberdade de opinião?

Quando a Apple fez um ultimato à Parler, dando-lhe um dia para impor a limitação dos discursos de ódio, escreveu que “queremos que fique claro que a Parler é de facto responsável por todo o conteúdo que é gerado por utilizadores e está presente no seu serviço e por assegurar que esse conteúdo corresponde às exigências da AppStore para a segurança e proteção dos nossos utilizadores”. Este reconhecimento da responsabilidade da empresa pela moderação dos conteúdos da sua rede tem gigantescas consequências jurídicas e constitui uma inversão da doutrina dos gigantes tecnológicos.

Até hoje, as proprietárias das redes sociais têm-se baseado na alegação de que nada lhes pode ser imputado pela promoção do crime por algum dos seus utilizadores. Baseiam-se na definição do estatuto de editor, nos termos do artigo 230º da lei norte-americana sobre a Decência nas Comunicações, de 1996, que estipula que “nenhum prestador ou utilizador de um serviço informático iterativo será tratado como editor ou porta-voz da informação disponibilizada por outro prestador de conteúdo informativo”. Assim, estas empresas têm-se comparado às bibliotecas: podem ter lá o “Mein Kampf” numa prateleira, mas não são responsáveis pelo Holocausto, pois não são editoras, são intermediárias. John Matze, da Parler, diz que a sua rede é uma praça pública onde entra quem quer e não um órgão de comunicação social. Ora, o argumento da Apple é precisamente o contrário: a rede, como um jornal ou uma televisão, responde pelo que escolhe publicar, tal como o autor do conteúdo. Se a lei for definida nesse sentido — e é a única forma de impor regras universais — poderá haver uma resposta contra a promoção do crime.

E quem nos protege?

Mas isto coloca dois problemas. O primeiro é que não podem ser as empresas a definir estas regras. Merkel ou a norte-americana American Civil Liberties Union manifestaram por isso preocupação com a expulsão de Trump do Twitter, embora denunciando o que ele escreve. De facto, se não for a lei e o Estado a determinar essas regras por procedimentos verificáveis e forem as empresas a fazê-lo, o arbítrio crescerá. Um dia, as tecnológicas podem escolher proibir os sindicalistas, os poetas ou quem quiserem. Deve ser a lei e não os álibis das empresas a regular o acesso ao espaço público.

A segunda questão é saber quem nos controla. Já reparou que, nas sessões do Infarmed sobre a pandemia, o mapa a que os cientistas têm acesso sobre as movimentações da população é da Google? É a empresa que diz como é que a população europeia se moveu entre a casa, o comércio e o lazer. As autoridades europeias ou nacionais não sabem (nem podiam saber, pela nossa lei, mas a Google está acima da lei). Ora, isso é espantoso — mas é a verdade dos factos. É a Google que vigia e que traça os nossos movimentos, pelo GPS dos nossos telemóveis, pelas compras que fazemos, pelas buscas, pelas mensagens. Sabem tudo sobre toda a gente e podem, se quiserem, saber tudo sobre si. Defendermo-nos desta outra ameaça tecnológica vai ser a questão-chave da democracia no século XXI.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 15 de janeiro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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