Irracionalidades

porMarisa Matias

01 de setembro 2013 - 14:00
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O que parecem ser irracionalidades tomaram de assalto o bom senso.

Saio da “Cidade Digital” que fica nos subúrbios de Seul. É fechada por muros, tem 17 mil metros quadrados e vivem lá mais de 20 mil pessoas – criativos, pensadores, gente talhada para descobrir de que é que vamos precisar desesperadamente daqui a uns meses ou a uns anos em matéria de tecnologias da comunicação e da informação. Os chefes são homens engravatados, a cantina está cheia de jovens – homens e mulheres –, de todas as partes do mundo, que dedicam pelo menos 12 horas por dia a “inventar, criar e testar”. Os salários são variáveis: se começarem às 7h da manhã têm um “incentivo”; se não pararem no fim-de-semana têm outro “incentivo” ainda.

- “Minha senhora, isto é um novo paradigma de economia, já não é a do trabalho intensivo como antigamente. É economia criativa”. “Olha se fosse...”, pensei. Para quem o apresenta com orgulho, o modelo do futuro tecnológico desejável está mesmo à frente dos nossos olhos. Há apenas um “pequeno” senão – as condições de trabalho. Não há alternativa, dizem-nos: tem de haver flexibilidade total, que é como quem diz suspender (ou eliminar) os direitos.

Este futuro, afinal, é já o presente na Cidade Digital de Seul: gente vinda de todo o mundo trabalha dia e noite para antecipar necessidades e vontades, sobretudo das corporações que procuram o “negócio” a todo o custo e a quem não falta mão-de-obra disponível para construir esse “sonho”. Os próprios sonhos passaram ao modelo de adjudicação. Mas a estes tempos respondia o poeta com acerto: quem é que precisa de um sonho quando pode ter um bom “programa” ou um “plano” para executar? Só mesmo quem ainda não se rendeu ao ideal de felicidade dos nossos dias, convertido no tão proclamado acesso aos mercados.

Escrevo sobre a cidade digital de Seul porque ela representa bem o que vivemos na Europa e em Portugal. O que parecem ser irracionalidades tomaram de assalto o bom senso. Não ponho em causa o desenvolvimento das tecnologias e a importância de aumentar em dois segundos a velocidade de um download, mas não partilho o modelo de construção desse “sonho”.

Vejamos este fim de Verão em Portugal. Um país a arder, vidas de bombeiros perdidas num combate cada vez mais desigual, porque é também contra a falta de prevenção e a desresponsabilização. Uma irracionalidade que custou demais, vidas que não se podem repor. Um ministro que diz às Universidades que não podem contar com o dinheiro público nem podem ir buscar dinheiro a mais lado nenhum. Uma irracionalidade auto-destrutiva. Um governo que “se esquece” não só dos swaps, mas também de enviar os dados sobre os cortes salariais que já efetuou e que planeia mais cortes, reconhecendo que faltavam uns dados nos gráficos; uma dívida que teima em aumentar e gente que continua a dizer que um dia os números hão-de ajustar-se, se continuarmos sossegadinhos. Contas matemáticas que valorizam, afinal, um cálculo irracional.

O Manuel António Pina perguntava no seu “Pequeno livro de desmatemática”: “numa multiplicação, se um dos fatores faltar e o outro chegar atrasado, quando é o resultado? Valerá a pena esperar?”. Se for para ficarmos condenados a estas “irracionalidades”, não vale mesmo a pena, até porque por detrás delas há uma estratégia muito racional.

Artigo publicado no jornal “As Beiras”, em 31 de agosto de 2013

Marisa Matias
Sobre o/a autor(a)

Marisa Matias

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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