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A invasão ainda não acabou

As tentativas sucessivas de genocídio e de eliminação cultural do povo curdo por parte da Turquia não é, infelizmente, uma novidade, mas não é por repetir-se que se deve naturalizar e abandonar as nossas preocupações.

Há uma semana fomos confrontados com a invasão de territórios curdos no norte da Síria por parte de forças militares turcas. Os Estados Unidos retiraram as suas tropas, na sequência da inenarrável declaração de Trump sobre a falta de apoio dos curdos na Normandia, e as populações de Rojava viram-se, uma vez mais, sob ataque. As tentativas sucessivas de genocídio e de eliminação cultural do povo curdo por parte da Turquia não é, infelizmente, uma novidade, mas não é por repetir-se que se deve naturalizar e abandonar as nossas preocupações.

Os curdos são a nação sem Estado mais numerosa do mundo. Após já vários genocídios, como o que aconteceu durante a guerra entre o Iraque e o Irão, são 30 milhões de pessoas que partilham uma bandeira e um hino, mas não as mesmas fronteiras. Na realidade, dividem-se entre a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irão num território contínuo, mas não reconhecido. Foi, aliás, o reconhecimento da Turquia enquanto país, com a assinatura do Tratado de Lausanne, em 1923, que pôs fim à curta duração de um Estado curdo com fronteiras delimitadas, e que a Turquia nunca tinha aceitado.

Os curdos lutam pela autodeterminação há centenas e centenas de anos, no tempo dos assírios chegaram mesmo a ter um território mais vasto do que o actualmente conhecido, mas não reconhecido, pela comunidade internacional. A verdade é que nas últimas décadas têm sido reprimidos nos quatro países onde se encontram. Em 2011, com o início da guerra civil na Síria, Bashar Al Assad mandou retirar as tropas de Rojava, deixando os curdos à sua sorte no combate ao ISIS. Foi nessa altura que se juntaram as tropas norte-americanas às Unidades de Protecção Populares, agora retiradas por Trump. O regresso do exército sírio a Rojava é um pau de dois bicos. Os curdos necessitam de apoio para se defenderem dos turcos, mas esse apoio vem reforçar a defesa das fronteiras sírias por parte das autoridades, o que é incompatível com qualquer cenário de autodeterminação. Um preço caro, mais um, que o povo curdo tem de pagar. A inacção da comunidade internacional na defesa do povo curdo é um sinal dos tempos. Os direitos humanos são mesmo relativos, e neste caso permanentemente desconsiderados. Ao mesmo tempo, o negócio do armamento segue florescente. O anúncio do fim de contratos de venda de armamento à Turquia por parte de alguns países europeus resvala no detalhe de se tratar apenas de novos contratos, mantendo os actuais, os mesmos que continuam a matar. Sabemos bem que o diabo está nos detalhes. Enquanto isso, o povo curdo continua a morrer, mesmo que nunca tenha baixado os braços.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 19 de outubro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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