William Phillips foi uma das figuras fascinantes que, na segunda metade do século XX, abriram novas portas na ciência económica. Nascido na Nova Zelândia, emigrou jovem para a Austrália, a lenda conta que caçou crocodilos, depois lutou na Guerra e foi preso pelos japoneses durante três anos e meio. Terminado o conflito, foi para Inglaterra. Aí estudou sociologia, interessado nos padrões de comportamento na prisão, e passou para economia. Brilhou então como engenheiro-economista: concebeu uma máquina hidráulica que simulava a relação entre o desemprego e a variação do salário, sobre a qual propôs um modelo matemático (e a máquina). O aparelho, que impressionou os seus contemporâneos, é hoje um objeto de coleção. Entretanto, uma versão deste modelo, considerando não os salários mas a inflação global, tornou-se o padrão da decisão na política monetária, prevendo o seu efeito nos preços e no emprego. As autoridades poderiam, se isto fosse assim, estabelecer um impulso monetário que movesse a economia ao longo da curva para controlar a criação de emprego, aceitando alguma inflação ou restringindo-a, conforme a conveniência. A máquina funcionaria ao sabor da decisão dos banqueiros centrais, uma ideia que sem dúvida os encantou.
Durante duas décadas, a Curva de Phillips reinou sem contestação. E depois foi assassinada por Milton Friedman e outros economistas, que impuseram um novo dogma.
A morte da Curva de Phillips
A crítica de Friedman à economia de Phillips dava por certo que não existe no longo prazo qualquer relação entre os efeitos da política monetária e a criação de emprego e que, assim, a expansão monetária para responder a uma recessão não cria emprego mas antes inflação, só agravando as dificuldades. Esta doutrina propôs um modelo alternativo, determinando que o nível de emprego é indiferente à variação dos preços, e apontou a experiência dos anos de estagflação, a década de 1970, como a prova provada da sua teoria. Seguindo esta visão, o presidente da Reserva Federal, Paul Volcker, impôs uma política monetária agressivamente restritiva, com uma taxa de juro de referência de 18%. Com Ronald Reagan estabilizou-se o predomínio das ideias conservadoras de Friedman e, desse modo, os bancos centrais aceitaram que a única política desejável seria o controlo estrito da massa monetária e que domar a inflação seria a sua única missão. Assim fizeram.
Durante duas décadas, a Curva de Phillips reinou sem contestação. E depois foi assassinada por Milton Friedman e outros economistas, que impuseram um novo dogma
A este longo período de inflação reduzida foi chamado a Grande Moderação. Também o crescimento foi medíocre (e muito desigual), o que levou os suspeitos do costume a perguntarem se não estaríamos numa “estagnação secular”. Pouco importava, os banqueiros centrais tinham o poder de decidir, como se fossem o omnipotente planeador central.
A heresia dos detetives federais
David Ratner e Jae Sim, dois investigadores da Reserva Federal norte-americana, o banco central mais poderoso e que não é conhecido por virtudes de pensamento plural, vieram agora dizer que tanto a explicação monetarista como a sua proposta estão erradas. Ao longo dos anos, esta instituição tem sido um dos pilares da nova ortodoxia, mas isso não impediu Ratner e Sim de se lançarem no perigoso caminho da heresia, como refere com espanto o “Financial Times”. O seu recente estudo, sobre “Quem assassinou a Curva de Phillips? Um mistério policial”, um título escolhido para não ser ignorado, garante que o culpado é o monetarismo, que teria confundido a consequência com a causa e que insiste em acentuar o problema.
Os dois autores propõem um novo modelo de análise da variação entre a inflação e o poder negocial dos trabalhadores, inspirados em Phillips e num seu predecessor, Kalecki, um economista polaco que antecipou alguma da teoria keynesiana e que estudou o conflito social. Segundo esse modelo, 87% da volatilidade da inflação é explicável pelo efeito da perda de capacidade de negociação dos trabalhadores e não pela política monetária. Neste contexto, a inclinação da Curva de Phillips (e Kalecki) depende da erosão da capacidade de negociação laboral, e os autores sublinham que a sindicalização caiu para metade nos EUA e no Reino Unido nas últimas quatro décadas, ou que a atividade grevista se tornou residual. Lembram ainda que o rácio entre o salário mediano real e a produtividade se reduziu nos EUA em 37% desde 1976. Como na Alemanha. Portanto, são as maiores empresas que determinam a inflação, através do seu poder de fixação de um mark up sobre os seus preços: segundo este artigo, esse valor foi de 40% em média entre 1980 e 2016. Um relatório do FMI sobre 900 mil empresas de 27 países, que aqui citei, provava que as 10% mais poderosas impuseram um mark up de pelo menos 30%.
Ora, isto tem uma implicação pesada. Se assim é, não será por pressão negocial dos salários, que é escassa, que temos inflação. É a “guerra de classes”, diz o “Financial Times”, que leva agora o capital a agravar a inflação permanente pelas escolhas sobre preços, aprofundando a compressão do poder negocial da outra parte e mantendo os salários baixos. Os factos batem certo: a inflação corrente ultrapassa a variação do preço da energia e de outros inputs. O trabalho tem vindo a perder e a inflação é a prova do poder do capital, explicam os economistas da Reserva Federal. Se conhecessem o nosso governo, saberiam como o monetarismo impôs a sua lei em São Bento.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 17 de junho de 2022
