Em Outubro de 2017 tive oportunidade de ver com os meus olhos os efeitos dramáticos dos incêndios rurais no nosso distrito, acompanhando os deputados Catarina Martins (coordenadora do Bloco de Esquerda) e o então presidente da Comissão Parlamentar do Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local, Pedro Soares. Contactámos com familiares de três das vítimas mortais (8 só no concelho de Vouzela, num total de 20 mortos no distrito de Viseu e 44 no resto do país). Assistimos a uma reunião de empresários de Oliveira de Frades, onde o parque industrial foi completamente destruído pelas chamas, dispostos a resistir e recuperar os 300 postos de trabalho directos. Em Vouzela foram 200 os trabalhadores que ficaram sem trabalho. Em Santa Comba Dão houve 5 pessoas mortas, 170 desalojadas (95 famílias), 80% de área ardida, 497 animais mortos. Em Nelas também morreu um homem. De 17 a 24 de Junho já tinha havido incêndios que, com início em Pedrógão Grande e em Góis, provocaram 66 mortos (incluindo 1 bombeiro) e 254 feridos, destruindo 500 casas e 50 empresas. Uma tragédia!
Agora, no passado mês de Setembro, em apenas quatro dias, mais de cem fogos provocaram 9 mortos (4 eram bombeiros) e 175 feridos (17 com gravidade, incluindo 11 bombeiros, e 87 feridos ligeiros, sendo 36 bombeiros). Arderam mais de 92 mil hectares de floresta. Castro Daire viu arder quase metade da área do concelho (47%), Carregal do Sal teve 46% do território queimado e S. Pedro do Sul 37,1%. Mais de 60 casas destruídas (2 primeiras habitações em S. Pedro do Sul ) e 30 empresas afectadas.
Comparando com as tragédias de 2003, quando morreram 18 pessoas, em 15 dias, com o fogo que destruiu quase cem habitações e 400 mil hectares de floresta, ou com a mais mortífera de 2017, parece que a reforma da floresta prometida então por António Costa poderia ter reduzido os efeitos das condições climatéricas (verões cada vez mais secos, temperaturas cada vez mais altas, menor pluviosidade) e da falta de ordenamento florestal, no entanto, o próprio relatório da AGIF - Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, entregue ao Parlamento em Junho, “denuncia” um desinvestimento na prevenção, com uma redução de 62 milhões de euros relativamente a 2022 (menos apoios agrícolas) e aumento dos gastos com meios aéreos (“armadilha de combate”), o que nem melhorou o ataque inicial, nem a gestão dos fogos (apesar dos avanços na formação de bombeiros e sapadores florestais) e alertou o governo e autarcas que deixaram “acumular, nos últimos 6 anos, vegetação fina, arbórea e arbustiva que irá alimentar incêndios mais rápidos e severos que podem destruir locais únicos, infra-estruturas e comunidades urbanas”. E assim aconteceu! Autarcas, como o de Penalva do Castelo ou de Águeda que viram arder boa parte dos seus concelhos, tinham exigido e conseguiram a suspensão da Carta de Perigosidade de Incêndio Rural, definida em 2021, por esta impôr faixas de segurança de 100 metros à volta de construções, nas áreas Prioritárias de Protecção e Segurança (APPS), consideradas de elevada e muito elevada perigosidade, com o argumento de que não tinham verbas para tal e isso dificultaria investimentos privados.
Há especialistas, estudos e planos, falta apenas acção determinada dos governos e autarcas. Quando Montenegro vem com a bravata “Nós não vamos largar estes criminosos!”, não só quer competir com o populismo demagógico da extrema-direita, como distrair-nos das responsabilidades do Estado. Segundo a PJ, a GNR e o SGIFR, 60% a 70% dos fogos rurais com causas identificadas são devidos a uso negligente do fogo (queimadas, fogueiras, foguetes, etc.), a acidentes (linhas eléctricas e raios), e “apenas” 20% a 30% por incendiários (a maioria com problemas de alcoolismo e/ou mentais por tratar).
A maioria das propostas do Observatório Técnico Independente para Análise, Acompanhamento e Avaliação dos Incêndios Florestais e Rurais (Lei nº 56/2018) não foram executadas. Mas as causas determinantes estão apuradas: a crise climática (temperatura superiores a 30ºC, menos de 30% de humidade e ventos superiores a 30 km/h), a má gestão florestal, com a monocultura do pinheiro (resinoso e altamente inflamável) e do eucalipto (com óleos inflamáveis que explodem com o calor, atirando folhas incendiárias a 3 km); o abandono do campo e das florestas que aumentam os matos combustíveis.
Soluções já propostas: ordenamento florestal, dando impulso ao incipiente cadastro dos 84,2% de proprietários florestais privados, a maioria muito pequenos e pulverizados por partilhas de herdeiros que têm dificuldades em pagar a limpeza dos matos (há que rever o Código Civil no Direito Sucessório, pois calcula-se que 60% dos terrenos estão em nome de falecidos). Há ainda 13,8% de propriedade comunitária e apenas 2% do Estado; apoios à agricultura familiar, à pastorícia e silvicultura para recuperar as hortas, pomares e pastos que substituem o mato, impedindo o fogo de chegar às casas e a rentabilização de espécies autóctones, como o carvalho e o castanheiro que a indústria de mobiliário tem de importar; posse administrativa de terrenos abandonados ou sem donos conhecidos, e suster a ganância de grandes proprietários de eucaliptais, como a Navigator que reivindica mais área para plantar eucaliptos. Apesar do Parlamento, após a tragédia de 2017, ter limitado bastante a liberalização, decretada pelo governo Passos/Cristas, da plantação intensiva de eucaliptos, esta espécie não adaptada ao nosso clima e ao solos cada vez mais a desertificar, que é um sorvedouro de água, já ocupa 10% do território e 81% da área arborizada e reflorestada depois de 2017.
Em vez de nos sujeitarmos acriticamente à perigosa aposta numa escalada belicista na Ucrânia que pode provocar uma guerra nuclear na Europa (pelos mesmos EUA/ NATO, Reino Unido e UE que continuam cúmplices do governo terrorista e genocida de Israel), preparando uma indústria de guerra que alavanque a economia, com o consenso do PS e do PSD para aumentar a despesa com as forças armadas, devemos exigir um maior investimento no desenvolvimento da produção agroflorestal adaptada às alterações climáticas e no apoio à criação de emprego no Interior rural que fixe as populações e evite o despovoamento. Esta guerra contra o fogo, que mata gente e animais, destrói bens e a natureza e põe em risco a saúde pública, é a única que temos de travar. O exército pode ter uma missão civilista, multiplicando o número de sapadores bombeiros (como os do Regimento de Engenharia nº 3, em Espinho), ajudando na limpeza de terrenos ardidos, desbastes, desramações, abertura de aceiros, erradicação de espécies invasoras, substituindo-as por espécies autóctones mais resistentes ao fogo e adaptadas às alterações climáticas. Para podermos, todos os anos, viver em paz!
