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Incêndios, o grande enigma português

Nos últimos cinco anos, o investimento do Governo na prevenção dos fogos florestais é irrisório. Mais uma demonstração de que o território é um vasto pedaço de terra desconhecido para o poder central.

Nem primeiro-ministro nem presidente da República vão a banhos em dias de incerteza. Depois da catástrofe ocorrida em Pedrógão Grande em 2017, qualquer responsável político sabe que fugir do fogo para descanso estival o mergulha em águas nada tépidas na opinião pública. A sombra do fogo queima. E, no entanto, sabe-se que qualquer um deles nada pode fazer senão distribuir avisos, lamentos e abraços perante fogos consumados. A resposta aos fogos florestais está, como sempre esteve, a montante. Ano após ano, exceptuando algum descanso da mão humana que a pandemia ironicamente trouxe, os permanentes e incessantes incêndios são o grande enigma português.

Portugal vive uma segunda onda de calor mas, no futuro, pode vir a sentir dez ondas de calor por ano. A crise climática é evidente e o país vive em seca severa ou extrema em todo o território. Em 2022, já arderam 20 500 hectares de floresta em Portugal, mais 68% de área ardida e mais 30% de fogos relativamente ao mesmo período do ano passado. O agravamento sentido desde sexta-feira passada, em parte resultado das altas temperaturas e pela preocupante concentração de ozono, é inquietante. Não só pelo manifesto aquecimento global, com recordes relativos e absolutos batidos em dezenas de estações de observação, mas também porque grande parte destes incêndios têm mão humana e reincidente. A incapacidade do país para responder ao que se soma, ano após ano, como uma inevitabilidade, é um crime perpetrado pelo poder político. Nada do que é antecipável pode ser encarado como uma inevitabilidade. E, ainda assim, continuamos à espera que as temperaturas ajudem, que os pirómanos se curem ou que os interesses desapareçam como fogo extinto.

Nos últimos cinco anos, o investimento do Governo na prevenção dos fogos florestais é irrisório. Mais uma demonstração de que o território é um vasto pedaço de terra desconhecido para o poder central. Apesar das alterações à lei para limitar a área de eucaliptal e da criação das unidades de gestão florestal, saltitamos entre planos de contingência e entre alertas laranjas e vermelhos, sem mais sapadores florestais, sem perspectiva de carreira e contratação, sem unidades, sem reflorestação da área ardida e sem o investimento estratégico que só não é urgente porque este ano, mais uma vez, já nada há a fazer. Quanto tempo mais será necessário para prepararmos o encontro com o inevitável que consentimos por única e exclusiva culpa? Se há muito que parte da responsabilidade individual, demasiado recai ainda sobre a nossa incapacidade colectiva em exigir responsabilização a quem, por incompetência, laxismo ou (des)interesse permite que, ano após ano, nada mude e tudo recrudesça.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 15 de julho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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